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Arte, educação e resistência no Morro da Providência

Arte, educação e resistência no Morro da Providência

Galeria a céu aberto transforma muros em memória e o território em espaço de afeto

Por Ana Julia Silveira para a VOZ Futura

No coração do Rio de Janeiro, um museu a céu aberto se desenha sem molduras ou paredes brancas. No Morro da Providência, a arte não espera convite: ela simplesmente acontece. A Galeria Providência, um projeto criado pelos próprios moradores em 2017, transformou o território em um ateliê vivo e a memória em um ato de permanência. Para Hugo Oliveira, idealizador da iniciativa, a Galeria é mais que um projeto estético. É um espaço de formação cidadã, política e afetiva: “a Galeria surgiu do desejo de resgatar a identidade e a história do morro por meio da arte. Sentíamos a necessidade de criar algo que valorizasse nossa memória e rompesse com a narrativa de apagamento que pesa sobre nós”, explica ele.

Na Providência, arte e educação são inseparáveis da vida coletiva. Um dos eixos de atuação da Galeria, o de Educação, Arte e Cultura, deu origem ao Pré-Vestibular Marielle Franco. O curso comunitário homenageia a trajetória da vereadora e mulher negra que, ao superar desigualdades, fez da favela uma plataforma de vida e luta. Segundo Hugo, educar a partir do território é mais do que ensinar conteúdos, é formar pessoas conscientes de sua história e de seu potencial. “Quando a favela se torna sala de aula, transforma a forma como nos olhamos e como o mundo nos enxerga. A gente aprende com o chão que pisa, com os encontros e com os afetos trocados diariamente”, afirma.

A proposta desafia a própria noção de conhecimento. Saberes ancestrais, práticas comunitárias, criatividade e a memória oral ocupam um lugar central nesse processo educativo. São experiências que estruturam a vida na favela, mas que raramente têm espaço nos currículos escolares. Na Galeria, esses saberes são celebrados e transformados em força criadora.

Entre as histórias contadas nos murais estão as de figuras do samba, da capoeira e das lutas por moradia – memórias que insistem em permanecer, mesmo diante das tentativas de apagamento. “Recontar essas histórias é uma forma de reparação histórica, mas também de inspiração para o que está por vir. A memória mostra que já resistimos antes e que temos força para seguir”, explica Hugo.

Além de um projeto artístico, a Galeria se tornou um espaço de cuidado emocional. Oficinas, mutirões e rodas de conversa abriram caminhos para que os moradores pudessem compartilhar suas dores e encontrar novas formas de lidar com elas. “A saúde mental emergiu organicamente. Muita gente dizia que pintar ajudava a aliviar a tristeza, a ansiedade, a solidão. Foi assim que nasceu nosso fórum mensal com mais de cem mulheres”, relembra Hugo. Essas ações se somam ao trabalho do NUSAMP – Núcleo de Saúde Mental do Morro da Providência – e às redes de solidariedade que estruturam o cotidiano: ajudar uma vizinha, celebrar aniversários, acolher em silêncio. Cuidado e afeto também são atos políticos.

Manter o projeto vivo exige constantes esforços. Hugo explica que a ausência de políticas públicas, os impactos da gentrificação e a desvalorização institucional da favela impõem obstáculos. As iniciativas resistem com o apoio de editais, parcerias pontuais e muita mobilização comunitária. “A gente precisa lutar para existir com autonomia. Cada parede pintada é também uma escolha política, um posicionamento diante do mundo”, reforça.

Os sonhos não param. Um dos próximos passos é a criação do Museu de Arte e História do Morro da Providência, com sede física e acervo estruturado. Enquanto isso, o coletivo prepara uma plataforma digital para reunir as memórias do território e consolidar um Centro de Memória acessível a todos. A ideia é reconhecer os saberes locais como parte legítima da construção de uma democracia cultural.

“A Marielle escreveu sobre isso: o direito à favela. Nós somos a geração que não só quer ficar, mas quer transformar. Queremos uma cidade que nos veja como parte legítima do seu futuro – diversa, antirracista e construída com justiça social”, afirma Hugo.

A Galeria Providência prova que museus podem nascer do cotidiano e que a arte pode ser, ao mesmo tempo, denúncia, afeto e futuro. Quando o morro fala, a cidade precisa escutar. E aprender.

Crédito das fotos: Fred

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