Compartilhe por:

Compartilhe por:

Em Trânsito: Lembrar para não esquecer

Em Trânsito: Lembrar para não esquecer

“Em memória do que fomos, para lembrar do que ainda precisamos ser”

Por Pedro Pirim Rodrigues, cofundador da Voz Futura.

“Em memória do que fomos, para lembrar do que ainda precisamos ser”

Faz dez anos que embarquei numa das viagens mais transformadoras da minha vida. Chamava-se Yad Vaed, e o nome tem um peso de acordo com o google: “mão e testemunho”, em hebraico. Mas, o Gabriel Zalcman, nosso “madrich”, guia em hebraico, costumava dizer que Yad Vaed tinha um significado simbólico como algo que diz: “Lembrar para não esquecer” – eu particularmente gosto dessa frase.

A viagem fazia parte de um programa do Hillel Rio, que une jovens em busca de sua identidade judaica, cria senso de comunidade e coletivo. É uma instituição que particularmente tenho um carinho especial. Essa viagem em si, era uma viagem de memória ao Holocausto. Então vocês podem imaginar o peso que isso tem. Atravessamos Varsóvia, Cracóvia, Wroclaw, Praga e Jerusalém. Visitamos campos de concentração e campos de extermínio – eu aprendi a brutal diferença entre um e outro nessa viagem. Também fomos a cemitérios, memoriais e guetos. Alguns muros ainda permanecem erguidos como forma de alerta.

Cidades que sobreviveram à barbárie e, de alguma forma, continuam tentando ensinar o mundo a ser humano. O que ficou comigo, para além das imagens, dos aprendizados passados pelos nossos guias e pontos de visita, foi o silêncio. Silêncio no qual ficávamos após cada dia. Um tipo de silêncio que parece gritar, como se o ar guardasse os nomes de quem nunca foi chamado de volta.

Em alguns momentos pegávamos o microfone do ônibus no qual andávamos para falar sobre nossas reflexões. A minha naquela altura já carregava um “que” de VOZ Futura. Lembro de dizer aos meus amigos que, apesar de toda a tragédia, focassemos em contar as histórias de quem também viveu e sobreviveu. E que dessemos muito mais valor a vida, mesmo de quem a perdeu, do que a vida de quem as tirou. Eu não vou falar o nome desse “alguém” porque eu acredito que quanto mais falamos mais perpetuamos a sua imagem e a sua mensagem. Devemos sim lembrar o que aconteceu. Mas pelas histórias de quem constrói vida. Não de quem as tira.

Em Auschwitz, o silêncio era avassalador. Silêncio que nos fazia meditar, rezar, chorar. Silêncio que me parecia ser naquele momento o gesto humano mais próximo da fé. Um movimento de lançar voz para o invisível, esperando ser ouvido por algo ou alguém. Voz que sai dentro mas não vai para fora. Permanece. Ecoa. Um grito contido, uma música possível, uma oração sem nome.

Nosso guia, Mario, propôs que eu e meu amigo Leandro Donner tocássemos uma música. Não era permitido em Auschwitz, mas conseguimos. Tiramos o violão da capa e tocamos “Eli, Eli”, composta por Hannah Szenes, uma jovem judia húngara que deixou sua vida confortável para se juntar à resistência e foi executada aos 23 anos. A arte sempre foi esse fio invisível entre a sobrevivência e o sagrado. Mesmo nos campos, onde tudo foi retirado, o ser humano ainda escrevia, desenhava, cantava,  resistia. Fazer arte é fazer resistência. Porque enquanto há expressão, há espírito. E quando há arte, também há vida.

Foi ali que percebi uma das maiores contradições humanas: a vontade de pertencer e o impulso de eliminar o que é diferente. É como se o mesmo desejo que nos faz buscar o outro também nos empurrasse a destruí-lo. Freud escreveu sobre isso a Einstein, em 1932, quando o físico o questionou sobre as origens da violência humana. A troca de cartas, publicada depois em Por que a guerra?, falava justamente dessa tensão entre Eros e Thanatos – o instinto de vida e o de destruição, convivendo dentro de cada um de nós. Mas por que? Por que a guerra? Por que o homem mata? Por que ainda existe arma? Por que a gente se destrói? Eu não consigo entender e realmente acredito em um caminho de paz.

Dez anos se passaram e, de certo modo, ainda estamos presos nesse ciclo. Seguimos construindo muros formados por algorítmos. Seguimos escolhendo o que enxergar, quem ouvir, o que silenciar. Mas não parece haver interesse real em acolher. Voltei do Yad Vaed com a sensação de que lembrar é um dever espiritual. Porque lembrar não é viver no passado, é transformar o presente em aprendizado. E talvez, entre a arte, a fé e a lembrança, ainda haja uma chance de cura. Porque ser humano é isso: continuar tentando fazer sentido mesmo quando tudo parece sem sentido. Criando e contando histórias que geram esperança e inspiração.

Esse texto foi baseado no exercício constante que temos feito aqui na VOZ Futura de lembrar todos os dias porque existimos. Eu lembrei dessa viagem e quis compartilhar com vocês. 

Mais conteúdos relacionados:

Mais conteúdos relacionados: