Por Pedro Pirim Rodrigues, co-fundador da Voz Futura.
“Cachaça! Tá tudo bem?”. “Cachaça” era meu apelido no bar que trabalhei em Londres em 2006 e quem gritava essa frase era o “Sam”, meu gerente do Kosovo. O nome dele não era “Sam”, mas para o europeu conseguir pronunciar seu nome de origem árabe era “difícil”, então, por que não mudar, não é mesmo?
Eu carregava um bloco de notas e duas canetas no meu avental, fosse para tirar um pedido de uma mesa ou para anotar as ordens do Sam que ele costumava dar sussurrando em meio a gritaria do bar.
“Pega 6 garrafas de Shiraz, 12 de água com gás, 12 coronas, 4 sacos de gelo…” (e a lista seguia). Anotava tudo com pressa enquanto tentava processar o que eu ia fazer e em que ordem. Até que um dia ele me indagou: “Eu não sei se eu te dou trabalho demais, ou se é você quem faz uma simples lista de pedidos parecer o trabalho mais difícil do mundo”. O Sam tinha razão, e aqui está o aprendizado número 01 que iremos chamar de:
- “Parecer simples para que então seja”. O que o Sam queria provocar em mim com aquela fala era um chamado à calma e a simplicidade. Toda vez que ele me passava uma tarefa e que eu tentava executar com pressa ou com medo de errar, eram exatamente nesses momentos em que eu me atrapalhava todo e acabava errando. O Sam, sem saber, me ensinou a respirar, ouvir com calma, foco e atenção. Mas o mais importante: me ensinou como a simplicidade ao executar uma tarefa faz tudo ficar mais leve e mais fácil. Quando abordamos uma situação já partindo do princípio de que ela é muito difícil, constantemente nos prendemos a ela, ficamos nervosos, aumentamos a pressão, interna e externa, e temos ainda mais dificuldade de fazer alguma coisa. Mas quando trazemos leveza e simplicidade para a execução, o nosso cérebro, assim como o nosso ambiente se torna mais tranquilo, e dessa maneira temos uma capacidade maior e melhor de desempenhar nossas funções.
O segundo aprendizado vem do mesmo cenário acima, e vamos chama-lo de:
2) “Em meio a pressão, diminua o tom”. O Sam não gritava comigo. Não precisava. O bar já era um ambiente barulhento o suficiente para aumentar qualquer nível de estresse. Se ele falasse no mesmo tom da gritaria ambiente só criaria mais pressão em um momento que ele precisava do máximo da minha atenção e tranquilidade para tirar pedidos e carregar caixas. Ele falava de forma firme, segura, direta e objetiva. Mas eu nunca vi o Sam gritar. Até no dia em que foi insultado por uma cliente que acabava de insultar uma de suas funcionárias.
E aqui chegamos ao aprendizado número três:
3) “O cliente tem sempre razão”. E essa é uma das maiores mentiras que já te contaram.
Em 2006, a Copa do Mundo acontecia na Alemanha, então pode se imaginar que um bar em Londres vivia lotado, mais do que o normal, com gente de todos os tipos e lugares. Não havia espaço ou tempo suficiente para servir todo mundo com o mesmo nível de atenção e qualidade. Entre as regras do nosso bar estava “servir um cosmopolitan em copo gelado”, em inglês britânico: “frosted glass” – chique pra caramba. Infelizmente, naquela fatídica tarde quente, entre o volume de pedidos, e a capacidade de lavar e esfriar copos para servir todos os drinks na mais perfeita qualidade, uma cliente pediu um cosmopolitan em um “frosted glass”. O Sam foi até a cliente e pediu desculpas pela inconveniência. Disse que poderia fazer qualquer outro drink na conta da casa para evitar a frustração do pedido não atendido. Mas… a cliente o insultou, e insultou a funcionária que trabalhava com a gente. Naquele momento, a máxima de que “o cliente tem sempre razão” foi pelo ralo, porque, de fato, ela perdeu completamente a razão quando insultou duas pessoas. Era 2006, o Sam era do Kosovo, e a nossa colega de trabalho, mulher, então… Bem, vocês podem imaginar, né?
O que o Sam me ensinou naquele dia, enquanto expulsava de forma elegante a cliente do bar, tem a ver com ética, lealdade, princípios inegociáveis, empatia, e muitas camadas socioeducativas que qualquer escola tradicional no mundo jamais será capaz de ensinar.
De um modo geral, o que mais aprendi trabalhando em um bar, em um país diferente, com uma grande diversidade cultural (naquela época), um ano após um atentado terrorista e o assassinato de um brasileiro, Jean Charles, “por engano”, foi sobre servir.
Saber servir e saber ser servido é uma das qualidades que mais respeito e admiro nas pessoas. E para funcionar precisa vir dos dois lados. A humildade e o respeito mútuo entre quem está servindo e quem está sendo servido precisa coexistir.
Isso pode ser visto de maneira crua e explícita em um serviço de bar, mas acredito que deva ser levado para todos os ambientes e esferas das nossas vidas.
(interrompi essa coluna em 3 aprendizados mas tem muito mais. Volto aqui depois para continuar. Agora tive que parar escrever. Mais um dia de São Paulo, de muito trabalho. Parando para entrar em um reunião… com um cliente… que sabe que nem sempre tem razão : ))