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Loquinha é um horizonte, não um ponto final.

Loquinha é um horizonte, não um ponto final.

O sucesso mostra que o público brasileiro está pronto para narrativas sáficas bem contadas

Por Fernanda Lima, especial para a Voz Futura.

Há algo de profundamente revelador no sucesso de Lorena e Juquinha em Três Graças.

O casal tornou-se viral internacionalmente não por ser mais um casal de mulheres, mas porque ofereceu algo natural e honesto, e essa naturalidade, paradoxalmente, ainda é revolucionária quando se fala de representatividade lésbica e bissexual. A trama não as coloca como “o casal lésbico”, mas “um casal”. E essa distinção muda tudo.

Ao contrário de tantas representações anteriores, Loquinha não é uma espécie de tese sociológica, não é provocação, não serve para testar limites. É romance com humor, afeto e desejo, algo tão básico, mas ainda disruptivo.

O que Três Graças faz com Lorena e Juquinha é simples: retira o romance sáfico da vitrine, onde sempre foi tratado como objeto raro ou perigoso, e o coloca na sala de estar. Mostra que duas mulheres vivendo um amor bonito não é polêmico, é cotidiano.

E quando o cotidiano abraça aquilo que antes era proibido, invisível ou distorcido, o mundo muda um pouco. Nós mudamos um pouco.

Para entender o peso desse casal com essa construção, é preciso olhar para trás. 

A televisão brasileira, especialmente entre as décadas de 1970 e 1990, tratou relações entre mulheres como um problema a ser contornado, apagado ou punido. Durante a Ditadura Militar, a censura proibia demonstrações explícitas de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Roteiristas, então, recorriam a “amizades intensas” e momentos íntimos que só o público mais atento decodificava. 

Quando personagens assumidamente lésbicas ou bissexuais finalmente apareceram, já nos anos 1990 e 2000, elas quase sempre vinham acompanhadas de sofrimento, rejeição familiar, punição moral, sexualização pelo olhar masculino ou silenciamento (exemplos disso são os famosos “beijos cortados” ou a falta de toque físico em situações que claramente pediam por isso). A regra era clara, duas mulheres podiam existir como casal desde que não existissem plenamente. O amor entre elas era tolerado, mas apenas cercado por tristeza, proibição ou formatado esteticamente para agradar homens heterossexuais.

É por isso que a naturalidade de Lorena e Juquinha é tão empolgante. Elas não vêm ao mundo narrativo para provar nada, não precisam se explicar, não carregam o peso de representar toda a existência sáfica. Sua sexualidade não é usada como conflito, mas como contexto humano, tão legítimo quanto o de qualquer casal heterossexual da trama.

A novela não faz alarde, não dramatiza a ponto de martirizá-las, não transforma sua relação em espetáculo sexual e tampouco em bandeira. Elas apenas existem, se apaixonam, se divertem, se observam. São tratadas como gente, e não como pauta.

E nesse ponto há uma contradição fascinante e profundamente reveladora em ver um casal como Lorena e Juquinha nascer de maneira tão natural na ficção, enquanto carrega por trás de si décadas de lutas históricas, políticas e culturais.

O romance entre elas é construído com a leveza e espontaneidade já pontuadas, como qualquer outro romance deveria ser, mas essa simplicidade, que deveria ser universal, só é possível hoje porque gerações de mulheres lésbicas e bissexuais enfrentaram censura, perseguição moral, apagamento narrativo, fetichização e violência simbólica na luta por melhores representações. Ou seja, o que vemos na tela como naturalidade é, na verdade, fruto de conquistas duríssimas. O casal não carrega bandeiras no discurso, mas carrega todas elas no caminho que tornaram possível. Cada olhar, cada toque, cada gesto entre as duas é um produto de batalhas que ocorreram muito antes de Três Graças existir. A naturalidade é o resultado; a luta, o fundamento invisível. Essa é a real beleza da representatividade verdadeira.

O fato de Loquinha ter cruzado fronteiras antes mesmo do primeiro beijo, inclusive, diz muito sobre o estado global da representatividade sáfica. Há uma fome mundial por narrativas honestas entre mulheres, fome cultivada após décadas de obras que transformaram personagens lésbicas em fetiches, mártires ou enigmas.

Comunidades de fãs internacionais enxergaram em Três Graças aquilo que procuram há anos: um romance que não precisa se justificar. E, quando encontram essa honestidade, não deixam passar, por isso legendam, traduzem, viralizam, fazem do algoritmo seu aliado. A internet reconhece autenticidade mais rápido do que qualquer mercado audiovisual.

Além disso, essa construção saudável de personagens mulheres que gostam de mulheres não é questão estética apenas, mas de saúde emocional. Estudos em Psicologia Social e Comunicação, por exemplo, apontam que representatividade positiva impacta diretamente autoestima, segurança afetiva e percepção de pertencimento entre jovens LGBTQIAPN+.

Quando meninas veem Lorena e Juquinha vivendo um romance descomplicado, sem punição, sem fetiche, sem sofrimento imposto, elas recebem uma mensagem que o audiovisual raramente oferece: “o que você é pode ser vivido em paz”.

E isso muda vidas, fortalece autoestima, encurta o caminho entre o medo e o orgulho, cria adultos mais satisfeitos consigo mesmos.

O sucesso do casal mostra que o público brasileiro está pronto (sempre esteve) para narrativas sáficas bem contadas, mas também exige maturidade do audiovisual nos passos seguintes, porque não basta incluir casais, é preciso continuar oferecendo dignidade.

Se a ficção continuar avançando assim, meninas lésbicas e bissexuais crescerão com mais referências, mais histórias e mais coragem. E o mundo melhora quando ampliamos a rede de quem merece viver histórias de amor. Nós melhoramos quando enxergamos no outro uma existência possível, não um tabu.

Loquinha é um horizonte, não um ponto final.

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