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Perder para se encontrar

Perder para se encontrar

Conheça Ian Fraser

Por Giulia Amendola

A literatura contemporânea brasileira tem encontrado, em autores como Ian Fraser, uma voz que traduz com intensidade as inquietações de uma geração. Com obras que transitam entre a busca individual e as complexidades do coletivo, ele constrói narrativas que atravessam identidade, pertencimento e os desafios de viver em um país em constante transformação. Seu mais novo livro, Cartografia Para Caminhos Incertos, reafirma esse compromisso ao explorar, de forma poética e visceral, as dores e descobertas de um processo de autoconhecimento.

Nesta entrevista à Voz Futura, Ian fala sobre como sua trajetória pessoal se entrelaça à ficção, reflete sobre o “ser brasileiro” em tempos conturbados, revisita suas origens como autor independente e compartilha conselhos para jovens escritores que sonham em trilhar a própria jornada literária. Um bate-papo sobre cicatrizes, sonhos e a potência de contar histórias que ecoam muito além das páginas.

Cartografia Para Caminhos Incertos é um livro, entre muitas coisas, sobre perder para se encontrar. De alguma forma, esse enredo também dialoga com a sua própria trajetória como escritor?

Ian Fraser — Certamente. A escrita de Cartografia acontece no meio de um processo intenso de terapia, com reflexões importantes sobre a minha identidade. Sei que todas as minhas obras carregam traços e elementos de minha vivência pessoal, mas esse romance vai além e, de muitas formas, eu me desnudo na frente do leitor, deixando aparente minhas cicatrizes, minhas ambições e sonhos.
Creio que todo mundo que começa algum processo terapêutico, começa porque sente que há algo faltando ou algo que ainda não faz sentido na construção do eu, ou seja, só podemos iniciar a jornada de “se encontrar” no momento em que percebemos que há parte de nós para sempre perdidas.

Sua obra carrega sempre a busca pelo “ser brasileiro”. O que significa, para você, traduzir essa identidade em páginas e histórias que chegam especialmente ao público jovem?

Ian Fraser — Não é possível entender o “ser” sem, de alguma forma, entender o coletivo. Não sou brasileiro apenas pelo CPF ou pelo Título de Eleitor e a minha construção como indivíduo passa pela rua que ando, pela forma que usamos a palavra, pela relação que temos com a comida, pelos laços afetivos e por tantas outras coisas que constituem a vivência social.
Não sou só a sopa genética que borbulha nesse casulo de carne, mas todas as ideias e sentimentos ao meu redor. E acho fundamental que nós, como sociedade, olhemos para as muitas fibras que tecem essa ideia de comunidade brasileira, para que possamos entender o que nos conecta, o que nos separa e o que nos torna únicos, principalmente em um momento político tão conturbado como esses em que vivemos, onde a palavra patriota é apropriada de forma irresponsável e nefasta. Não compreendo como alguém possa se chamar de patriota odiando tanto as muitas vivências e culturas brasileiras e amando apenas o próprio quintal.

Você começou sua carreira de forma independente, com apoio direto dos leitores em plataformas de financiamento coletivo. Como essa conexão inicial com o público moldou sua forma de escrever e se relacionar com a literatura?

Ian Fraser — Isso formou a minha persona como escritor. Se você for aberto e honesto, não há como entrar no Financiamento Coletivo e não sair do outro lado uma pessoa mais empática e solidária. Quando o seu sonho é construído por mãos de estranhos, pessoas que você não sabe o nome, mas que estão lá, ao seu lado, você aprende a ser humilde, você aprende a apreciar o fato de pertencer a uma comunidade. Sou cria do Catarse e nunca me esquecerei disso.

Muito se fala sobre as pesquisas sobre o número de leitores estar em queda no Brasil e normalmente esta é uma pergunta que surge para diversos autores. Se pudesse deixar uma mensagem para jovens escritores que sonham em trilhar caminhos incertos, mas repletos de significado, qual seria?

Ian Fraser — Uma excelente pergunta. Depende muito. Sou muito cauteloso ao conversar sobre os sonhos dos outros, pois é entrar em um terreno muito pessoal, muito valioso, e eu não sei se tenho ferramentas para ter opinião ou voz lá dentro, sabe?
A verdade, infelizmente, é que estamos falando de um mercado pequeno, com seus vícios e com um elitismo estrutural que é bem problemático, estamos falando de uma realidade financeira que tem suas particularidades e desafios, e estamos falando de uma construção de carreira que tem muitos elementos de politicagem e sorte nos bastidores, nem sempre é sobre talento ou justiça.
Contudo, fazer arte também é uma experiência que geralmente vai além de todos esses percalços. Criar algo, seja um livro, um quadrinho, um filme, uma música, a gente não faz isso apenas pensando em uma carreira e em pagar boleto (por mais que eles sejam sempre importantes, afinal, ninguém se alimenta de sonhos). Então, no fim, o que eu tenho a dizer tem pouca relevância, porque o chamado da arte é um chamado bem específico; quem escuta, escuta. E aí cada um sabe o que está disposto a encarar ou a abrir mão.
Vejo que o importante é que seja sempre um ambiente saudável. Nem digo feliz, porque isso é subjetivo, romântico e simplista. Pode ser difícil, pode ter momentos de tristeza, de frustração, de alegria, de raiva e de tantas outros sentimentos, sabe? Até de desistência. Tudo bem mudar de sonho, mas que seja sempre saudável.

Fale um pouco sobre essa virada de chave que você comentou que o este livro em um “novo” gênero representa para você e sua carreira? 

Não sei se é virada de chave, sinto que estou me aventurando em uma literatura nova para mim, com um público e com uma proposta artística diferenciada, mas eu sempre fiz isso. 

Talvez, se eu fosse mais orientado pelo mercado, focaria em uma vertente e firmaria meu nome lá, mas o meu compromisso sempre foi com a história e o que 

ela pede. Se a história pede leveza, sigo pela leveza, se a história pede poesia, sigo pela poesia, se a história pede que eu desligue a gravidade, eu desligo a gravidade, o importante para mim é o que a história pede. 

A história, enquanto ideia, é algo terrivelmente difícil de definir, é imaterial, é nebulosa, mas parece ter uma alma própria. Tem parte que é minha, meu trabalho, meu suor, minha pesquisa, mas também tem uma parte que parece vir do outro lado. Tem parte que parece coisa do axé, ou de qualquer outro nome que a pessoa se sinta confortável de chamar e nem falo de divino por uma vertente religiosa, mas do encantamento que nos cerca. 

Até na concretude da ciência e da matemática há encantamento e um tanto de fé para que as coisas aconteçam ou sejam. 

Crédito da foto: Ligia Rizério

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