Por Igor Monteiro
Era uma dessas noites de sábado chuvosas que, estranhamente, têm sido recorrentes no Rio – mesmo perto do verão. Convidativo para um filminho. Eu e Vanessa, minha esposa, escolhemos o aclamado “Frankenstein”, de Guilhermo del Toro, produção da Netflix.
Se nossa intenção fosse um filme para “pensar em nada”, teríamos falhado naquela seleção. Há várias camadas a serem cuidadosamente exploradas. Se não assistiu ainda, recomendo fortemente – e me comprometo, daqui em diante, a não exagerar em spoilers.
Ou, pelo menos, não adiantar nada que vá comprometer sua experiência.
O ponto de partida da obra é a infância traumática de Victor Frankenstein, filho do mais renomado médico cirurgião de seu país em seu tempo (anos 1800’s), com quem vive uma relação fria, conturbada e de muita exigência. Victor perde cedo sua amada mãe, durante o parto de seu irmão mais novo – um evento controverso que parece despertar no garoto um certo desejo por vencer a morte.
É nessa missão que se empenha, anos mais tarde, quando desponta como um cientista simultaneamente aplicado e amargurado, empreendendo experimentos para devolver a vida a corpos já falecidos.
Não precisa conhecer a obra original para lembrar da referência que todos carregamos em alguma medida sobre Frankenstein. A criatura composta por uma miscelânea de diferentes corpos; um remendado de membros, orgãos, músculos, tendões e tecidos em quem a vida parece soprar novamente não por obra divina, mas por uma intervenção humana.
No filme de del Toro, claro, a criatura está lá. Meu papel aqui com esse artigo não será analisar o processo científico (e ficcional) empreendido por Victor Frankenstein até sua criação ganhar vida. Mas, avaliar um outro processo, retratado no filme somente após os seus primeiros suspiros e piscar de olhos.
O processo de aprendizagem.
A epidemia de solidão
Mês passado, estive no RH Summit IA, fórum organizado pela Associação Brasileira de Recursos Humanos do RJ (ABRH-RJ). Um dia inteiro dedicado a palestras e debates sobre as influências e convergências das ferramentas da Inteligência Artificial com as ciências da liderança, cuidado e gestão de pessoas.
Centenas de profissionais de RH de organizações de diferentes tamanhos e segmentos de mercado. Uma dúvida pareceu pairar consistentemente os conteúdos ali abordados:
“em tempos de IA, como preservar e desenvolver nossas habilidades mais humanas?!”
Carreguei comigo aquela pergunta por algumas semanas, igualmente preocupado com o impacto que algumas inovações têm representado em nossas habilidades relacionais.
Afinal, acredito que você também compartilha da seguinte percepção pessoal, de certa forma refletida nas perguntas do Summit:
Nunca estivemos tão conectados. Nunca estivemos tão sozinhos.
Um retrato do quanto a tão aclamada tecnologia é capaz sim de resolver alguns dos nossos problemas – com inegável potencial de gerar outros.
O afeto é instrumento de transformação
Parte da resposta àquela pergunta central no Summit me pareceu apresentada justamente em “Frankenstein”. E, embora tenha como cenário um passado distópico do século XIX, o filme parece ressoar nos problemas atuais (e futuros) associados às criações humanas.
Antes de seguir, reforço meu compromisso inicial de não exagerar nos spoilers, deixando com você a deliciosa responsabilidade de assistir ao filme e refletir comigo.
A criatura cuja vida é estabelecida a partir das experiências de Victor Frankenstein é apresentada com traços humanos potencializados com características muito próprias, quase de super heróis. Força extrema e capacidade de recuperação imediata de feridas e lesões. Uma espécie de Wolverine, sem a autoconfiança e as garras de adamantium.
Com medo da própria criação e suas reações ainda um tanto brutas, Victor inicialmente o esconde no porão de seu laboratório, acorrentado e isolado de contatos com outros humanos ou o mundo externo. Seu desenvolvimento cognitivo e motor inicial é inegavelmente limitado por todas essas condições.
Um evento decisivo muda radicalmente essa realidade – e a criatura livre, emocionalmente acolhida por outro personagem, alcança um nível até então inimaginável de desenvolvimento a partir exatamente dessa relação.
Ao “brincar de Deus”, Victor Frankenstein vencera a morte. Mas sua obra carregava outra característica naturalmente humana intacta em sua personalidade. Tanto para nós quanto para sua criatura, o processo de aprender requer afeto antes mesmo de qualquer conteúdo ou metodologia.
Machine learning X Human Learning
Você certamente se lembra de um professor ou professora, dos tempos de escola ou faculdade, que te fez gostar e se empenhar em alguma matéria – mesmo que aquela disciplina não fosse seu forte. A conexão humana, não o conteúdo, incentivou sua dedicação.
Hoje, ficamos fascinados quando o app do Uber apresenta o nosso destino na tela antes mesmo de digitarmos para onde vamos. Ou quando o Chatbot do nosso Banco é “cuidadoso” e “educado” na solução de nosso problema. Investimos tempo e acumulamos cursos para elaborar prompts (forma como escrevemos comandos para ferramentas de IA) cada vez melhores, mais detalhados, capazes de gerar respostas cada vez mais elaboradas.
Vez ou outra, agradecemos e pedimos ‘por favor’ às ferramentas de IA que usamos, refinando repetidas vezes nossos comandos a cada resposta.
Uma paciência e dedicação que vez ou outra esquecemos de ter quando tentamos explicar um conteúdo ou fazer um pedido a outro humano.
Se o resultado da tarefa realizada por essa outra pessoa fica aquém das nossas expectativas, é o fim do nosso dia. Estouramos, suspiramos de raiva, socamos a mesa, esbravejamos.
Dedicamos mais afeto ao machine learning do que nos processos de human learning.
O Frankenstein de del Toro parece me responder bem à pergunta do IA Summit RH:
“em tempos de IA, como preservar e desenvolver nossas habilidades mais humanas?!”
Tornando nossos afetos, nossa humanidade em essência, em verdadeiros instrumentos de transformação de outros humanos.
Sem afeto, sem humanidade, não há aprendizado


