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Partilha: a crise da confiança

Partilha: a crise da confiança

Como nos tornamos especialistas em desconfiar?

Por Igor Monteiro, consultor de aprendizagem corporativa e especialista em design instrucional.

Alguns meses antes da luta entre Popó e Wanderlei Silva, uma outra possível disputa tomou a internet – e essa discussão certamente chegou, de alguma forma, até você:

100 humanos X 1 Gorila – quem venceria essa batalha?!

Meu objetivo com o artigo de hoje não é responder a pergunta – mas, ampliar essa discussão. Contando, para isso, não com um especialista em artes marciais, mas com um dos grandes filósofos dos nossos tempos – Yuval Harari, autor de “Sapiens | Uma breve história da Humanidade” (2011). 

Imagine que enviássemos um gorila e um humano a uma ilha deserta. Confinados por lá, um deveria lutar contra o outro pela sobrevivência. Eu apostaria, sem dúvidas, no gorila – mesmo que o humano fosse o Wanderley ou o Popó. 

Num segundo cenário, enviamos o mesmo gorila e 100 humanos à mesma ilha, propondo a mesma dinâmica. Disputa difícil, mas há agora uma oportunidade clara para nosso “time”. Um diferencial no qual, claramente, superamos primatas e outras espécies.

Evidentemente não é a força. Mesmo em outras valências, como velocidade, há espécies infinitamente melhores que a nossa. 

Segundo Harari, o diferencial que nos tornou a espécie capaz de construir o mundo tal qual construímos e que nos daria alguma chance nessa luta é a nossa habilidade de cooperar, de forma flexível, na direção de um objetivo em comum.

E você pode argumentar que abelhas ou mesmo formigas também cooperam, é verdade. Mas não de forma flexível. Suas estruturas são rígidas e a definição hierárquica intransponível em uma colmeia ou num formigueiro. Operárias trabalham, não se juntam para redefinir a organização da população. 

Com humanos, cooperando de forma flexível, é diferente. São incontáveis os exemplos de impérios que ruíram e outros tantos surgiram, vitórias e derrotas em batalhas, reorganizações de cidades e sociedades. Histórias construídas a partir de ações coordenadas entre grupos humanos. 

O elo que tornou possível cada uma dessas histórias de cooperação entre humanos: nossa capacidade de confiar

Quando você entra em um avião, um Uber ou um ônibus, por exemplo, mesmo que não conheça a pessoa que pilota, você confia sua viagem nas mãos dela. Se chega a um consultório médico para ser consultado e descobrir o motivo de não estar se sentindo bem, você confia na médica que te atende – mesmo que nunca a tenha visto antes. 

Historicamente, confiamos como nenhuma outra espécie é capaz de confiar.

De uns tempos para cá, fomos nos tornando especialistas em desconfiar

Por que confiamos em quem confiamos?

A confiança tal qual conhecemos é construída e nutrida baseada nas experiências vividas e repetidas com outra pessoa associadas a três dimensões: competência, caráter e conexão

Voltamos ao exemplo da médica ou do piloto do avião. Mesmo que não os conheçamos, acreditamos na competência de cada um em suas respectivas funções, comprovadas por suas certificações. Afinal, são especialistas. 

A partir do convívio e da forma de agir das pessoas ao nosso redor, conseguimos também atestar também aspectos sobre o caráter. Perceber que outra pessoa agiu de forma a te prejudicar ou explorar, te passar para trás, é uma receita para destruir a confiança. 

Quanto mais convivemos e nos relacionamos com uma pessoa, quanto mais criamos espaços para saber sobre a vida dela e abrimos espaço para ela saber sobre a nossa, maior a conexão gerada. A conexão construída e sustentada ao longo do tempo tende a significar mais confiança. 

Diplomas e certificados atestam alguma competência. Deslizes evidentes de comportamento e atitudes que fogem a moralidade geram questionamentos sobre caráter. Escolher ou não confiar em outra pessoa baseado nessas duas primeiras dimensões parece um pouco mais fácil – afinal, podemos captar evidências para essa escolha. O desafio sempre esteve na conexão (mais precisamente, a analógica). 

Certa vez, durante uma viagem, outro filósofo, o alemão Schopenhauer, definiu o chamado Dilema do Porco Espinho. Da janela do trem, no rigoroso inverno europeu, Schopenhauer observou dois porcos espinhos tentarem se aproximar, se conectar, de modo a amenizar o frio no calor um do outro. O problema: os espinhos. 

Uma ilustração que reflete os desafios do convívio humano. A nossa necessidade de proximidade e apoio social, pertencimento e relação contrastando com os desafios de viver com aspectos nem sempre tão agradáveis da personalidade e comportamento de cada indivíduo.

Desafios reais e milenares da convivência humana, potencializados pela conexão digital. A conexão das redes que nos entrega o (pouco) calor, equivalente ao gerado pela luz de uma tela, ao mesmo tempo que nos distancia desses aspectos não tão agradáveis do relacionamento. Uma conexão convenientemente distante, encerrada vez ou outra de forma instantânea através de um botão de ‘silenciar’ ou ‘bloquear’. 

Conectados aos fragmentos cuidadosamente expostos da vida de algumas pessoas, conhecemos cada vez menos sobre nossos vizinhos ou mesmo sobre nossos amigos. 

Sabemos o nome dos filhos (e pets) de influenciadores. Conhecemos detalhes das casas onde moram. Curtimos fotos de sua última viagem de férias. 

Não sabemos se a pessoa que trabalha diariamente ao nosso lado tem filhos. O que gosta de fazer quando está fora do escritório. Como foram suas últimas férias. 

Distâncias ampliadas. Conexões reduzidas. Confiança ameaçada. 

Ano passado, palestrei para um time de mais ou menos 100 colaboradores de departamentos administrativos. Diferentes áreas de uma mesma empresa. Muitos trabalhavam juntos há pelo menos 1 ano. 

O tema da palestra – Confiança Estratégica. Uma reflexão guiada por essa crise da confiança, passando por estratégias práticas de como resgatá-la através da conexão, inicialmente com as pessoas com quem convivemos. 

Como aquecimento antes de uma das dinâmicas de grupo propostas durante a palestra, fiz um teste sem que eles soubessem. Sugeri que tivessem dois minutos para olhar os celulares, responder mensagens, ver notificações antes de entrarmos na dinâmica propriamente dita. Praticamente todos, sem problemas, rolaram feeds e interagiram com seus telefones com habitual naturalidade. Uma conexão natural entre olhar e tela.

Passados os dois minutos, orientei os participantes a olharem nos olhos da pessoa ao lado, sem falar, apenas olhar, pelos mesmos dois minutos. Uma forma de gerar a conexão que seria explorada durante a dinâmica. E dessa vez, o desconforto foi geral… risos, falas, olhares que insistiam em fugir um do outro. Como se houvesse obstáculos claros àquela conexão real. Mesmo considerando que os participantes se conheciam

Ou será que realmente se conheciam?

Distâncias ampliadas. Conexões reduzidas. Confiança ameaçada.

E aquele diferencial da capacidade de cooperar, de forma flexível, na direção de objetivos comuns, a habilidade centrada na confiança  e que nos trouxe, enquanto espécie, até aqui, se perdendo na (des)conexão que nós mesmos, enquanto espécie, estamos produzindo.

Conteúdo, Experiência, Pessoas + Redes

Espaço dedicado a sugerir a você mais conteúdos, experiências e pessoas + redes para você se aprofundar no tema de cada texto – prática que copiei do Conrado Schlochauer.

Conteúdo:

  1. Palestra TED Harari (2015): “Porque humanos comandam o mundo”, uma reflexão sobre a nossa capacidade de cooperar –  e o quanto ela é decisiva para humanos serem a espécie que dominou o planeta

Experiência

  1. Conecte-se e confie. Chame alguém com quem você trabalha para almoçar – e conversem sobre a vida para além do trabalho. O que essa pessoa gosta e faz no tempo livre, quais seus hobbies, sonhos. Com quem ela mora. Conecte-se de verdade e construa a confiança. Dica extra: não levem os celulares. 

Pessoas + Redes 

  1. Siga o Marco Fabossi no LinkedIn. Fabossi é autor do livro “Fator Confiança” e mentor de lideranças executivas. Boa parte do conteúdo dele na rede gira em torno justamente da construção de espaços de confiança na realidade de equipes de trabalho. Vale conferir

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