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Katia Rubio: lembrar, um exercício mágico

Katia Rubio: lembrar, um exercício mágico

Meu tempo é hoje, já dizia Paulinho da Viola.

Por Katia Rubio, professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da USP e especialista em psicologia do esporte

Finais de ano sugerem balanços, balancetes, reflexões. Adoro a frase do Paulinho da Viola que diz “meu tempo é hoje”. Isso não significa negar o passado, apenas que a vida segue, em frente e o passado é uma referência que nos humaniza. 

Esses dias, arrumando umas coisas em casa, encontrei uma carta que meu pai me escreveu quando eu estudei na Espanha. Seo Hilário, o guru da família, era dado ao ritual de escrever cartas. Digo ritual porque tudo começava com um chamado, podia ser uma intuição ou o recado explícito de que alguém necessitava de sua atenção. Ele então começava com um processo de ruminação que envolvia atacar o problema pelos flancos. Ele iniciava sua missiva com algo do cotidiano, sempre, todo o tempo, com uma frase divertida, uma anedota ou uma observação jocosa de um fato familiar que tivesse relação com o tema-problema específico. Depois entre rodeios, floreios ou analogias ele mandava seu recado-conselho cheio de afeto. Suas cartas escritas em letras de forma pareciam obra de calígrafo e esse capricho estético demonstrava também o carinho com que aquela tarefa era realizada. Depois vinha o preparo do envelope, a caminhada até o correio, a colagem do selo e a entrega ao funcionário com a recomendação de que a entrega fosse feita com esmero.

As cartas quando chegavam ao seu destino eram motivo de alvoroço. Isso porque todos sabiam que suas escrituras não eram em vão. Elas carregavam recados preciosos de quem tinha olhos para enxergar a alma do interlocutor. Seus destinatários sabiam ser aquele papel um gesto de atenção pouco comum a não letrados. Daí, a importância da correspondência. 

Talvez por isso tenha me tocado tanto ler aquela carta escrita há 21 anos! Acredito que ele tenha sido um de meus grandes incentivadores na arte de escrever e contar histórias, memórias. Como escrever uma carta, exceto as comerciais, sem contar uma boa história? 

Tirei a sorte grande na vida acadêmica de ter seguido uma linha de pesquisa que me permitiu ouvir histórias. Centenas, milhares de pessoas que viveram o esporte na condição de atletas. Quantas histórias! Quantas aventuras! E nesse percurso fui guardando-as, não com a intenção de acumulá-las, mas de fazê-las se encontrarem naquilo que na matemática se chamaria de MMC (mínimo múltiplo comum). Claro isso que havia de comum era o esporte. Mas, com o passar do tempo percebi que o verdadeiro encantamento disso tudo era o MMD (máximo divisor comum), ou seja, o maior divisor compartilhado por eles, sua humanidade. 

Foi incrível saber que para além da vida compartilhada publicamente, por meio das competições que levariam esses atletas a serem reconhecidos, havia muito mais experiências, muito mais histórias e muito mais humanidade escondida no back stage de suas vidas privadas. 

A relação próxima com essas histórias não teria acontecido sem o respeito aprendido com meu pai. Escutar é uma arte. Falar uma necessidade. Sentar e ouvir, interagindo com respeito, com curiosidade sim, mas sem invasão. Recolhendo de cada história um fio para tecer outras formas de contar aquilo que foi tão significativo para essas e esses narradores.

E no exercício dessas lembranças, as memórias vão ficando gravadas para as pessoas, famílias, sociedade, enfim para a história. E quem sabe, depois de anos, ao se ler em um livro, artigo ou mesmo nesse site, vocês consigam experimentar a mesma sensação que eu tive ao reler uma carta tão simples, mas tão cheia de significado.

A escrita pode ser poética mesmo sem ser poesia, afinal, como canta o poeta saiba que os poetas como os cegos podem ver na escuridão.

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