Compartilhe por:

Compartilhe por:

Katia Rubio: Atletas não são mercadorias

Katia Rubio: Atletas não são mercadorias

Para que a memória dos mártires do esporte não seja apagada jamais.

Por Katia Rubio, professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da USP e especialista em psicologia do esporte

O termo comprar ou vender um jogador sempre me incomodou. Isso porque seres humanos não são mercadorias e percebo a naturalização do termo e a dificuldade em colocar um substantivo “passe” ou “contrato” no meio da expressão “comprar o…”. Parece preciosismo da parte de quem se incomoda, mas não. As palavras têm poder e esse poder forma e afirma cultura. Ao utilizar a expressão comprar o jogador X há um processo de desumanização do atleta, o que aproxima o esporte de um negócio milionário e o distancia do fenômeno sociocultural que é. E nesse processo de desumanização cabe muito mais coisas do que afirmar o negócio. Há aí o apagamento do protagonismo do atleta, a coisificação de suas habilidades, a subtração de seus direitos e a fita adesiva invisível colada à sua boca que o impede de reclamar contra as injustiças tão naturalizadas ao longo dos tempos.

O esporte nasceu como uma prática aristocrática para aristocratas, apelidado de amador para que ninguém fora dessa bolha pudesse entrar. Tentativa malsucedida, pois como fenômeno humano universal, cuja expressão afeta não apenas o corpo, mas também a alma, escapou por suas frestas às classes populares dentro das fábricas e das igrejas. Secular, provou a tensão entre essas polaridades ao longo de todo o século passado, até se render às evidências da sociedade: era preciso profissionalizar para haver dedicação exclusiva e alcançar a potência máxima de corpos fora da média que se entregavam ao exercício profissional pré-existente, porém disfarçado por contratos de gaveta. Quando o sistema percebeu que estava à margem dessas negociações, e que com isso perdia preciosos vinténs, resolveu mudar as regras do jogo e também se locupletar de transações que começaram modestas e se tornaram vultuosas, milionárias, demasiadamente rentáveis, com o passar do tempo.

O futebol escapou a essa regra já na década de 1920. Isso porque muitas empresas empregavam atletas habilidosos que não necessariamente tinham as mesmas habilidades no chão das fábricas. Mas, o importante era garantir bons “matches”, principalmente contra os aristocratas que mantinham o poder das entidades que regulavam e organizavam os certames. Correndo em paralelo ao Movimento Olímpico criou regras específicas para que suas competições pudessem contar com esse tipo de atleta, chegou a ficar fora dos Jogos Olímpicos de 1932, mas diante do sucesso alcançado pelo campeonato mundial organizado por Jules Rimet em 1930, foi rapidamente incorporado ao programa olímpico que buscou se ajustar à realidade de uma modalidade que fugia às determinações do amadorismo. 

O breve século XX passou sem deixar saudades. A pós-modernidade e sua liquidez devorou a modernidade jurássica que tantas regras impôs para ser superada. O futebol esfregou na cara da sociedade as desigualdades sociais, regionais e global. Nascido e crescido eurocêntrico, branco e aristocrático foi roubado mundo afora para ser praticado em campos de terra, com bolas não tão redondas, nem tão tecnológicas, servindo apenas para alcançar a meta adversária. Da brincadeira de rua e da várzea brotaram alguns poucos talentos que ganharam o mundo e encantaram o planeta. Diante de tal visibilidade chegou-se a pensar que isso poderia estar ao alcance de todos, mas quis o destino que habilidade apenas não seria suficiente para transcender o reino dos mortais. Estar no lugar certo, na hora certa era privilégio de alguns. Entretanto, o sonho de estar entre esses pouco levou muito a tentarem a sorte de grande, submetendo-se a condições de vida desumanas. E assim, o caminho até o estrelato ficou marcado por tragédias pessoais e coletivas que não deveriam jamais ser esquecidas para que outras não voltassem a acontecer. Que a memória desses mártires do esporte não seja apagada jamais. 

Meninos do Ninho do Urubu, presentes!

Mais conteúdos relacionados:

Mais conteúdos relacionados: