Por Gabriel Machado*
A união entre o cuidado com a saúde mental e o futebol tem sido cada vez mais debatida no Brasil, e grandes nomes do esporte têm comentado sobre questões pessoais e a importância do acompanhamento com profissionais da psicologia. Alguns dos protagonistas do espetáculo, como o atacante Michael, do Flamengo, e o zagueiro Lyanco, do Atlético Mineiro, já se pronunciaram sobre depressão e como o acompanhamento com psicólogos mudou a vida e a carreira deles. Em abril foi a vez de Tite, ex-técnico da Seleção Brasileira, falar sobre o tema ao negar o cargo no Corinthians por sofrer com crises de ansiedade e entender que deveria focar na saúde mental.
Dos 20 clubes que disputaram a Série A do Campeonato Brasileiro em 2024, seis não contavam com Departamento de Psicologia. Pelo menos dois desses fizeram contratações na área para a atual temporada: Flamengo e Athletico Paranaense. Após um ciclo de seis anos sem, e com posicionamentos de jogadores como De Arrascaeta sobre buscar ajuda por fora do clube, o Flamengo é um dos times que passou a investir no cuidado à saúde mental. Em 2025, os quatro gigantes do Rio de Janeiro se preocupam com a saúde mental dos atletas não só no nível profissional, mas também nas categorias de base, onde ocorre a formação do jogador.
A coordenadora do Departamento de Psicologia do Fluminense, Emily Gonçalves, entende que o auxílio mental com os Moleques de Xerém, como são apelidados os jovens do clube, é fundamental por se tratar de um faixa etária que naturalmente já lida com transições fisiológicas, psicológicas e até hormonais. Emily destaca que o trabalho é de contato no dia a dia para entender fatores que afetam os jovens, como pressão familiar e ansiedades com assinaturas de contrato, gestão financeira ou possível chegada ao time profissional.
“Ansiedade por conta de um jogo, expectativa de ser titular ou não, lidar com o erro, com a possibilidade de assinar um contrato, e também, em alguns atletas, com a pressão dos pais. É um processo de incerteza em relação ao futuro que vai gerando mais impacto na ansiedade deles.”

De acordo com a coordenadora, o clube conta com auxílio psicológico desde 2000, mas até 2015 trabalhava apenas com um profissional da área. Ela explica que em 2018 o Tricolor das Laranjeiras investiu na equipe e hoje, com cinco profissionais, trabalha com atletas a partir dos 9 anos, com avaliações individuais e coletivas e planejamentos estratégicos de periodicidade e metodologia de acordo com a necessidade de cada categoria.
“Cada categoria tem sua especificidade, e nosso trabalho é de vínculo. Então, é no corredor, na escada, no campo, no refeitório. Obrigatoriamente, a gente precisa acompanhar o dia a dia nos treinamentos para ver comportamento ou emoção. Fazemos um atendimento onde for confortável para esse atleta, até mesmo no campo”.
Na última década é notável o crescimento de jogadores jovens com destaque na mídia, oportunidades em grandes times brasileiros e até já cotados ou contratados pelo futebol europeu, mesmo que menores de idade. Atual melhor do mundo, Vinícius Jr foi vendido ao Real Madrid por R$164 milhões, aos 16 anos. Hoje, o atacante Estêvão, do Palmeiras, é o maior exemplo de menor de idade já protagonista e vendido ao mercado da Europa, em negociação que pode passar os R$300 milhões.
O processo de profissionalização, que acontece cada vez mais precocemente, e o aumento das responsabilidades para um adolescente é algo que preocupa a psicóloga do Fluminense.
“Cada vez mais eles estão se profissionalizando muito cedo e a nossa preocupação é que eles percam justamente o que eles mais precisam, que é o lúdico, o brincar. Além disso, diminuir esse impacto da obrigação de fazer algo além, porque existe aí a perda do interesse. Inúmeros abandonam porque perdem o interesse, não têm mais alegria.”
Emily Gonçalves
No Flamengo, clube que vendeu jovens como Vini Jr, Lucas Paquetá e Reinier nos últimos anos, o trabalho com a base começou nos anos 90 e hoje apoia aproximadamente 180 jogadores entre 13 e 20 anos. O acompanhamento no Rubro-Negro é realizado de maneira geral com o grupo, além de atendimentos personalizados, sob demanda que pode vir do psicólogo, da comissão técnica ou do próprio atleta.
A idade também é um aspecto que faz diferença na abordagem dos profissionais. As categorias menores demandam mais didática, mais trabalhos e intervenções lúdicas e é um processo muito mais psicoeducativo. Enquanto isso, mais próximo do Sub-20 os trabalhos são próximos aos executados no profissional, mas ainda com esse viés educativo e instrucional.
No Botafogo, o cuidado com a saúde mental também é frequente desde as categorias de base, com dois profissionais exclusivos para os jovens e a busca por aumentar esse time. Com acompanhamentos diários, feitos em grupo ou individualmente, o Glorioso fornece auxílio aos atletas do Sub-10 ao Sub-20, além do elenco profissional.

Psicólogo da base do Botafogo, Bruno Sanches explica que o contato é feito desde o primeiro dia do jogador no clube, quando ele assina o contrato e passa por todos os setores de saúde e performance. Ele destaca o trabalho de autoconhecimento feito com os atletas, para que sejam capacitados e direcionados para que consigam, de forma autônoma, se gerenciar emocionalmente, especialmente em momentos de oscilação de humor, demandas ou frustrações dentro de uma partida, para que o jogador saiba como reagir.
“A grande sacada do trabalho psicológico na base é estruturar esse caminho, para que, quando chega no nível profissional, a gente tenha atletas com saúde mental, que consigam performar e desfrutar. Quando a gente trabalha em prevenção a gente está falando em redução de danos, em promoção de saúde mental. É um trabalho preventivo, um trabalho estruturante.”
Bruno Sanches
A ideia de estruturação e prevenção também é compartilhada pela profissional do Fluminense, que compara o trabalho psicológico na base a uma vacina. Emily ressalta que é um processo de educação emocional, já preparando o atleta para esse futuro.
“Temos uma oportunidade de vacinar o atleta para que, através do autoconhecimento, através do letramento em saúde mental, eles consigam entender o que acontece com o corpo, com a mente e com as emoções deles. Com esse processo, eles aprendem a se autorregular.”
O Vasco é um dos pioneiros quando se fala em psicologia no futebol brasileiro, e oferece o trabalho para as divisões de base desde 1986. Hoje são mais de 400 atletas, entre 6 e 20 anos, contemplados pelo trabalho de psicologia do clube. A psicóloga do Sub-17 cruzmaltino, Ana Beatriz Poubel, explica que o Vasco da Gama divide as categorias em três módulos: iniciação esportiva (Sub-6 ao Sub-10); desenvolvimento (Sub-11 ao Sub-14) e alto rendimento (Sub-15 ao Sub-20).
A profissional de psicologia detalha que o clube de São Cristóvão trabalha tanto com os profissionais quanto com os estagiários acompanhando todas as atividades das categorias, sejam reuniões técnicas, reuniões de elenco, treinos, jogos, sessões de vídeo ou atividades na academia. Ana Poubel acredita que tal estratégia gera um grande ganho qualitativo, pois os profissionais estão inseridos no cotidiano dos atletas.
“Esse modelo potencializa o nosso principal foco, que é a observação sistemática. Estar presente diariamente, em diversos contextos e momentos, possibilita um olhar atento, detalhado e contínuo sobre o comportamento, as necessidades e o desenvolvimento emocional e psicológico dos atletas, tornando o nosso trabalho mais eficiente, assertivo e integrado à rotina esportiva”
Ana Poubel
Ana Beatriz acompanha a equipe Sub-17, atual campeã da Copa do Brasil da categoria, desde que esses atletas estavam no Sub-13. O corpo técnico do Vasco é composto por cinco estagiários e dois profissionais formados, o que, segundo ela, garante a cobertura de todas as categorias. Poubel ressalta que o departamento de psicologia trabalha integrado com outras áreas e fortalece o cuidado com os atletas.
“Contamos também com o departamento de desenvolvimento humano, composto por assistente social e pedagoga. O trabalho da psicologia é constantemente interligado com todos esses departamentos, pois estamos presentes nas atividades realizadas por eles e, inevitavelmente, muitas demandas que surgem no contexto psicológico precisam ser tratadas em conjunto com outros profissionais.”

A gestão financeira é outro foco dos clubes cariocas. Em abril, o jogador Huguinho, da base do Botafogo, renovou com o clube com multa rescisória superior a R$ 600 milhões para clubes europeus. Do lado das Laranjeiras, em fevereiro, o Fluminense firmou um contrato profissional com a joia da base, Pablo Henrique, de 17 anos. O acordo assinado até o fim de 2027 tem multa de R$ 300 milhões.
Bruno Sanches explica que aspectos como esse, que podem ser tratados como uma pressão para o jogador, precisam ser entendidos pelos jovens e são muito debatidos. O psicólogo diz que é importante diferenciar pressão de desafio e cobrança, por exemplo.
“Quando a gente fala de pressão a gente está falando da autopercepção sobre uma determinada situação. Então, trabalhar as questões cognitivas em relação à situação que está causando pressão é essencial. Se deve observar se tem algum tipo de distorção, algum tipo de falha nessa percepção sobre desafio. Isso a partir dos 15 anos. Antes disso, a gente precisa fazer eles desfrutarem, blindando de qualquer tipo de pressão.”
Emily e Bruno destacam que o acompanhamento psicológico é muito bem recebido pelos jovens das categorias de base e que faz parte da criação de uma cultura. A coordenadora do tricolor conta que, em 18 anos de experiência, a diferença de recepção ao trabalho é marcante, e hoje os próprios meninos procuram e estão sempre em contato com eles. O psicólogo do alvinegro diz que os mais novos estão muito abertos e entendem que o processo não é de imposição de ideias, mas sim de busca por uma análise que os ajudem.
* Estudante de Jornalismo da PUC-Rio, aluno da disciplina Planejamento Editorial da professora Itala Maduell, em colaboração para a Voz Futura.