Por Danilo Luiz, fundador da Voz Futura.
Entre atletas, a gente costuma dizer que ninguém chega ao pódio sozinho. E, quando penso nisso, um dos primeiros nomes que me vêm à cabeça é o do Flávio Canto. Ele foi referência no tatame muito antes de eu sonhar em chegar ao profissional. E continua sendo fora dele, como comentarista, empreendedor social e fundador do Instituto Reação. Conversar com ele é entender que o esporte vai muito além do resultado: ele é cultura, é caráter, é a capacidade de acreditar no que ainda não existe.
Nesta entrevista para a Voz Futura, Canto fala sobre os valores que o moldaram no judô, as derrotas que ensinaram mais do que qualquer medalha, a importância da preparação financeira para escolher com liberdade e a força transformadora do Reação. De histórias grandiosas a gestos simples, ele mostra por que formar atletas é só o começo, o verdadeiro objetivo é formar pessoas que transformam outras pessoas.
1) Você construiu uma carreira brilhante no tatame e também fora dele, como comentarista e empreendedor social. O que mais te inspira quando olha para essa trajetória e para as pessoas que impactou ao longo do caminho?
Dizem que os atletas têm a síndrome da próxima luta. Eu não olho muito pra trás, sabe? Não sou muito bom nisso. Tô sempre olhando pra próxima missão. Às vezes eu tenho um pouco de saudade da época que eu competia, especialmente dessa coisa de viajar o mundo que eu adorava. Fiquei um bom tempo trabalhando na TV, tinha a missão de comentarista, mas também fiquei apresentador, Esporte Espetacular e outros programas. Hoje eu tenho feito mais pontualmente participações na TV, em Olimpíadas, especialmente em mundiais de judô. Mas o que eu acho que nunca saiu de mim mesmo foi o empreendedor social, né? O Reação é a parte mais legal da minha vida. Estamos inaugurando um polo gigante na Rocinha… Lindo, de cinco andares. O que eu gosto desse caminho de tudo isso que eu faço e vivi, desde do tatame a fora do tatame, acho que é a cultura que você leva pra vida, de comprometimento, essa habilidade de ver primeiro o que a gente desenvolve de alguma maneira, de acreditar que são possíveis coisas que outros não veem, a gente vai lá e luta. Acho que a gente tem muita coisa que vem do esporte, então isso é o meu orgulho, de viver. De ter o judô dentro de mim nesses valores, que conversa muito com o princípio do Reação, da minha vida, que tem a ver com construir, conquistar e compartilhar.
2) Qual foi a lição mais marcante que o judô te ensinou e que você carrega até hoje em todas as áreas da vida?
Disciplina, humildade, superação. Eu comecei tarde, então comecei numa jornada de derrotas. Eu comecei com 14 anos, embora eu tenha chegado com 19 na Seleção, eu até lá eu não tinha chegado praticamente nenhuma competição. A gente perde muito, né? Uma competição em uma modalidade que é muito volátil de resultado. Com o tempo, você começa a entender que não é muito sobre não perder. É sobre como eu lido com tal perder, com a derrota, como é que eu caio, me levanto mais rápido, como é que eu reajo, até por isso o nome do Reação é Reação. Eu tive bons patrocínios (claro que no judô a gente não tem comparação com futebol, com vôlei, com tênis, né, para os principais atletas), mas eu fui um atleta dentro do meu espaço, que teve ótimos patrocínios, soube lidar relativamente bem, com cuidado, sempre fui um cara pé no chão, nunca fui muito ostentador, sempre tentei gastar menos do que eu tinha. Continuo assim, eu acho que isso foi preparando para mim um respaldo, para na minha transição. Acho que pra mim dinheiro tem a ver com liberdade de fazer escolhas que não dependam dele, e isso obviamente depende do teu padrão do que é dinheiro pra você. Pra mim sempre foi sobre construir liberdade, independência para fazer escolhas que não estivessem associadas a ele, e eu acho que ao longo da minha vida, eu fui construindo esse espaço.
3) A transição da carreira de atleta para outras frentes da vida costuma ser um momento desafiador. Como você se preparou financeiramente para o futuro? No início da sua trajetória, como era lidar com a organização financeira e quais os maiores desafios que enfrentou nessa área?
Eu sempre gostei muito de ler, então eu acho que isso me deu alguma coerência ali nas escolhas. Sempre apostei no longo prazo, acho que o planejamento financeiro é sobre longo prazo, tem que ser. Eu nunca fui um trader da vida, sempre tive investimentos desde muito tempo… há 15, 20 anos no mesmo lugar, eu tento não mexer. E, aos poucos, fui aprendendo um pouco mais, então hoje eu tenho uma carteira bem diversificada.
4) Muitas pessoas veem os atletas apenas no pódio, mas não conhecem as batalhas diárias, as derrotas e os recomeços. Houve algum momento em que você pensou em desistir? Como encontrou força para seguir em frente?
Acho que passa pela cabeça de todo atleta essa coisa de desistir. A gente tem momentos que revisitamos tudo e acha que “po, talvez seja hora de me aposentar”, aí de repente você volta e luta muito bem. Sempre entendi que a vitória ou a derrota é o dia seguinte de uma competição. A gente sempre precisa de um tempo para decantar aquela sensação, aquela emoção. Eu tive um overtraining importante no ano 2000, que era o ano de uma Olimpíada, que eu acabei não indo para a Olimpíada. Fui como reserva na verdade, foi um período difícil para mim, que eu tive que parar, você quando tem um overtraining de verdade que eu tive, constatado por exames, etc., é como se eu estivesse doente ali, tem que se reorganizar, e tem consequências do ponto de vista de motivação, né? Tem a ver com cortisol, tudo isso. Vivi muitas lesões também. Então, tive momentos difíceis, mas no final eu sempre queria aproveitar a vida de atleta que eu tinha. Sempre gostei de ser atleta, gostei de viajar. Eu tinha ambição por construir, sabe? Talvez até mais do que por conquistar. Aí algumas vezes eu tive boas conquistas, né? Eu cheguei a ser número 1 do mundo por quase dois anos. Tive uma medalha olímpica. Mas eu gostava do dia a dia, assim. Foi difícil parar muito mais por causa disso, eu acho.
5) Você fundou o Instituto Reação, que transforma vidas através do esporte. Qual foi a história de transformação mais emocionante que você já testemunhou ali e que reforça sua crença no poder do esporte para mudar o Brasil?
A gente tá falando aí de 25 anos de história, 22 de fundação. A gente tem histórias de dentro do tatame, de fora, né? De dentro, grandes resultados de alunos. Alunos que têm medalha olímpica, medalha de mundial. A gente fez um jantar solidário agora, aí a gente pediu para um aluno nosso, que é um exemplo, explicar a trajetória dele. Porque, no Reação, você faz uma jornada tanto no tatame, como fora dele no programa de educação. A gente tem um Programa Olímpico, tem um programa de bolsas também para alguns e o Reação Conecta. É uma forma deles terem que fazer uma boa escolha lá na frente porque eles tiveram acesso a crescimento tanto do ponto de vista socioemocional, como do ponto de vista também mais técnico de conteúdo. E esse menino hoje, que se formou em engenharia, mestrado na UERJ, hoje trabalha na PRIO, uma das principais parceiras do Reação, está ficando grande para caramba, sabe? A gente tem muita história assim, tem uma menina, Adriely, que fazendo medicina e foi apresentar um projeto em Chicago.
Mas, às vezes, as que mais me tocam são os momentos menores, assim. A gente tem alguns alunos que moram em Abu Dhabi dando aula de jiu-jitsu. Um deles, que é um filhão meu praticamente, veio para o Brasil visitar todo mundo e fez um evento num restaurante que era um pouco mais caro, para uns 20 amigos/alunos, né? No final, quando eu fui pedir para pagar a conta, eu estava preocupado, porque eu sabia que muitos ali não iam ter dinheiro para pagar aquele restaurante específico. Mas aí ele já tinha pagado para todo mundo, fui falar com ele e ele me disse: “se hoje eu tenho condição, eu faço questão, porque essa galera mudou a minha vida, o Reação é minha vida, e sempre que eu puder…”. E aí trouxe um quimono para cada um, deu para todo mundo, sabe? Esses momentos me trazem uma emoção de pensar: “puxa, faixa preta dentro e fora do tatame”, que é a nossa missão, né? Mais do que um transformado formar transformadores. Então, às vezes, eu tenho esses momentos que eu fico cheio de lágrimas no olho, cara.
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