Por Giulia Amendola para a Voz Futura
Atriz, roteirista e criadora inquieta, Tóia Ferraz tem atravessado diferentes linguagens — da TV ao teatro, do riso ao silêncio — com a mesma força que transforma vivência em arte. Em 2025, ela habita personagens tão distintas quanto marcantes: de uma vilã debochada em ““C.I.C – Central de Inteligência Cearense“, – que estreia em 21 de agosto nos cinemas brasileiros – à protagonista de um monólogo intenso e autoral sobre perda gestacional.
Nesta conversa exclusiva com a Voz Futura, Tóia fala sobre o que aprendeu ao interpretar mulheres complexas, reflete sobre as lacunas do audiovisual para narrativas femininas, e compartilha como sua criatividade tem sido o território onde dor e potência se encontram.
Tóia, você vive personagens muito diferentes neste ano: de uma vilã cômica em “CIC” a uma mulher real e complexa em “Praia dos Ossos”. O que esses papéis te ensinaram sobre o feminino?
Estou respondendo essa pergunta um dia depois da divulgação do caso do homem que desferiu 60 socos na namorada. Precisei respirar antes de escrever, pois essa notícia é avassaladora. A verdade é que nós, mulheres, já percorremos um longo caminho ao longo da história — e as personagens lindas que tive o privilégio de interpretar são parte dessas conquistas. Porém, estamos longe de viver em uma sociedade igualitária. Ser mulher, ainda hoje, é um ato de coragem e interpretar grandes mulheres ainda carrega a missão de educar, provocar, iluminar. Aprendi e me diverti com a Koorola, cresci e me libertei com a Marion, mas ainda sinto que cada personagem é também uma denúncia — de tudo que ainda precisamos transformar, enfrentar e conquistar. A arte tem essa chance rara de provocar reflexão, dar voz ao que é silenciado e, quem sabe, abrir caminho para mudanças reais.
Você falou sobre a importância de humanizar uma vilã e dar camadas à personagem. O que isso representa pra você enquanto mulher-criadora e atriz?
Pra mim, esse lance de humanizar personagens tem tudo a ver com identificação. Quanto mais o público acredita nas qualidades e nos defeitos de alguém, mais ele “compra” o personagem e mergulha na história. É um exercício interessante — na arte e na vida também. Quantas vezes eu já briguei com as minhas imperfeições? Felizmente, hoje, do alto dos meus 3.8, já não luto tanto contra o que antes me incomodava. Com o tempo, fui aprendendo a abraçar essas partes também. Mas claro, é um exercício diário. Tô longe de ser a evoluidona e tudo bem.
No teatro, você estreia seu primeiro solo autoral sobre perda gestacional. Qual foi o impulso que te levou a transformar essa dor em criação? Já tem data para a estreia? O que você pode contar sobre este projeto?
Sempre canalizei minhas dores pra arte. Foi assim quando me divorciei, quando perdi meu pai, quando fui demitida… e não foi diferente com as minhas perdas gestacionais. Na primeira vez em que perdi um filho, postei no Instagram um texto com uma foto tirada no dia do aborto, falando sobre o luto e recebi uma avalanche de mensagens de mulheres que tinham passado por experiências parecidas, lembro de não dar conta de responder a todas. Aquilo me escancarou o quanto esse tema ainda é silenciado, o quanto essas mulheres não estão sendo ouvidas. Foi aí que nasceu a vontade de levar isso pros palcos, sempre soube que queria tratar desse tema no teatro, porque é ali que a troca real acontece. A peça é um monólogo de autoficção, que mistura humor ácido, poesia e realismo. Tem projeções, áudios e participação do público, é um espetáculo sobre perda, mas também sobre amor, reconstrução e presença. A dramaturgia ainda está em processo, então por enquanto não temos data de estreia, mas a urgência já existe e vem de um lugar muito íntimo e, infelizmente, muito comum.
Você transita entre humor e drama com fluidez. Em que medida essas linguagens te ajudam a provocar reflexões e ampliar conversas com o público?
Pra mim, a melhor forma de fisgar o público é através do humor, mesmo, ou talvez principalmente, quando o assunto é pesado. Desde a primeira conversa que tive com a diretora da peça, a Soraia Costa, eu já sabia: não queria um dramalhão, não queria que as pessoas saíssem do teatro arrasadas. Eu admiro profundamente quando um artista consegue fazer rir e, na sequência, dar o golpe , aquele soco no estômago que te pega de jeito. É uma arte e eu ainda tô aprendendo, mas esse é o exercício.
Quais espaços você sente que ainda precisam ser abertos para mulheres no audiovisual — e como seus projetos tentam construir essa transformação?
Acho que evoluímos muito nos últimos anos, mas a estrada ainda é longa. Durante muito tempo, os papéis mais complexos, com os melhores arcos dramáticos sendo reservados aos homens e as mulheres interpretando as esposas que esperavam em casa, enquanto eles viviam aventuras mirabolantes e divertidas. Isso tem mudado, sim, mas ainda é mais comum do que deveria e é justamente por isso que eu escrevo. Porque eu também quero viver aventuras mirabolantes — enquanto meu “macho” me espera em casa, também quero interpretar uma guerreira, uma soldada, uma policial, uma pilota, é preciso ocupar esses espaços. Todas as protagonistas dos meus projetos são mulheres e isso não é coincidência.
A sua inquietude criativa é sua força motriz. Como você cuida da sua criatividade no dia a dia, especialmente em meio a tantos projetos?
É ela que cuida de mim! (rs). De verdade: se eu não crio, eu piro, criar é o que me mantém sã, o que me dá direção, o que sustenta minha autoestima. Me formei em Arquitetura, depois estudei teatro e, na sequência, cinema. Sempre fui atraída por áreas que envolvem imaginar, construir, transformar e é assim que eu navego no mundo, sendo a forma que encontrei de existir. Agora, sobre ter muitos projetos… já entendi faz tempo que isso é preciso mesmo, nunca saberemos qual vai vingar primeiro. O importante é estar sempre semeando e confiando na colheita.
Crédito da foto: Renato Nascimento


