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Apanha a Frequência: o último grito

Apanha a Frequência: o último grito

Costuras imperfeitas.

Por Paulo Pascoal

A primeira vez que ouvi a expressão “último grito” foi da boca da minha mãe. Trouxe-me de Portugal um par de botas de camurça castanha, com um mini-salto de madeira. Eram um pedido meu, mas chegaram fora de tempo: a moda já tinha virado a página. Para me convencer, ela sorria e dizia que eram o último grito. Esqueceu-se, no entanto, de atualizar o meu número de calçado, e as botas mordiam-me os dedos como se quisessem lembrar-me que crescer é também um exercício de dor. Entre o constrangimento e o júbilo de receber o presente, calei a insatisfação e agradeci em silêncio, fingindo caber naquela promessa de estilo.

Angola, início da última década do século XX. Eu, pré-adolescente, via o mundo a mudar depressa demais. O hip-hop chegava às nossas ruas como um trovão. As parabólicas abriam janelas para videoclipes americanos onde reinavam calças largas, blusões enormes, bonés invertidos e ténis reluzentes. Nada disso combinava com as minhas botas semi-afeminadas. Os rapazes ensaiavam os saltos dos Kris Kross, as raparigas imitavam as cascatas das TLC. Eu, habituada aos lagos e rios da infância, não resistia às cachoeiras do tempo. No dia seguinte, levei as botas apertadas para as seis horas de turno escolar. A dor subia pela planta dos pés como se cada passo me revelasse que crescer é andar sempre em sapatos que ainda não se ajustam à pele.

“Há dias em que não cabes na pele com que andas, parece comprada em segunda mão, um pouco curta nas mangas.”

Este verso de João Monge tornou-se senha secreta para reconhecer-me. Palavras são molduras invisíveis: definem-nos, contêm-nos, libertam-nos. Fazem-nos pertencer a uma linguagem antes de pertencer a um lugar. Talvez por isso, hoje, todas as manhãs depois da meditação e do café, eu me sente neste jardim a escrever. A escrita é o meu exercício de resgate, memória e cura. É nela que deposito os fantasmas que regressam, as alegrias que quero prolongar, as dores que não cabem em silêncio. Palavras são também casas: nelas aprendi a habitar-me e a reconhecer-me no olhar do outro.

E quem também anda a dar o último grito são as moscas que se passeiam pelo meu corpo. Irritantes e inquietas, cumprem com fervor o seu papel invisível no ecossistema. Pequenas, desprezadas, mas essenciais — lembram-me que até o mais incômodo carrega um propósito.

Os eclipses de setembro — o lunar no dia 7, o solar no dia 21 — trouxeram-me de novo a sensação de não caber em mim. Como se a pele fosse estreita demais, costurada às pressas. Mergulhei em profundidades cósmicas, procurando a maturidade de quem quer resolver-se, ou pelo menos aproximar-se disso. Percebi que o outro em nós desperta feridas antigas: inseguranças, ciúmes, acusações que nos denunciam. Somos todos frágeis diante do olhar do amor. Mas aprendi também que onde há amor, há sempre possibilidade. E quando é assim, nada acaba — apenas muda de forma.

Talvez o último grito não seja da moda, das moscas ou da dor nos pés. Talvez seja a nossa própria voz, a insistir que a vida não se veste de peças perfeitas, mas de costuras imperfeitas que nos obrigam a crescer. O último grito é, afinal, o da alma que pede espaço, mesmo quando a pele parece pequena demais — como aquelas botas castanhas da minha infância, ainda apertadas na memória, mas agora alargadas pela escrita.

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