Por Paulo Pascoal
Às vezes ouvimos palavras que se alojam em nós com a sonoridade de múltiplas dúvidas. São como pensamentos ruidosos que só se aquietam quando lhes prestamos atenção, mas não sem antes atingirem um timbre tão lancinante que quase nos estilhaça o tímpano.
A mácula, essa ínfima zona luminosa no centro da retina, guarda o segredo da nitidez: o detalhe, a cor, a capacidade de reconhecer um rosto, decifrar uma letra, focar o que verdadeiramente importa. Curioso como tímpano e mácula partilham a mesma tutela simbólica: o sexto centro energético, o Chakra Ajna – o Terceiro Olho. Morada da intuição e da sabedoria, da percepção espiritual, da clareza que nos guia e do delírio que nos desfoca quando o equilíbrio vacila.
Hoje, porém, esse equilíbrio escapa às práticas silenciosas do yoga ou da meditação. O mundo tornou-se um campo de provas permanente; as surpresas são diárias, e a distopia deixou de ser hipótese para ganhar corpo, densidade e fronteiras tão reais quanto o ar que respiramos.
Penso nisso porque, há pouco tempo, a Pantone anunciou a cor do ano para 2026: Cloud Dancer, um branco quase absoluto – e essa revelação incendiou debates pelo mundo inteiro.
Quando eu era criança, sempre que me vestisse de branco, a minha avó Santa dizia que eu parecia uma mosca caída no leite. Eu ria, mas insistia no branco: era a minha cor favorita, repetia, porque sobre ela podia pintar qualquer outra. Talvez, por ser criança, intuísse que o branco não era ausência, mas promessa.
Neste momento, vejo-o noutra luz, noutra espessura. O branco esvazia a cor, neutraliza-a, ou melhor: debota-a. Branco não é transparência; é intenção de transparência. Vontade hegemónica de purificação a qualquer preço. É a pomba da paz, o fumo do Vaticano, o alimento refinado, a luz da cozinha, do bloco operatório, as nuvens — essa arquitetura contínua do céu.
É o tom da cegueira coletiva, trespassada por um raio de luz que fende a pálpebra, revelando não o que está lá fora, mas aquilo que escolhemos não nomear. Branco é o intocável: não ousamos sujá-lo, como se a mancha revelasse a verdadeira matéria.
Ao saber da morte do arquiteto Frank Gehry (1929–2025), a 5 de dezembro, lembrei-me da primeira vez em que vi o Museu Guggenheim Bilbao, ou a Casa Dançante em Praga. Aquelas curvas indomáveis, a distorção das linhas rígidas, as formas que pareciam mover-se ao sabor do vento – eram construções vivas, quase respirantes.
Imaginei que assim seria o futuro: a arquitetura como organismo pertencente. Aos poucos, fomos escolhendo o contrário: o estéril, o asséptico, o imaculado. Insistimos numa limpeza que não é inclusiva — é estratégica. Uma imposição silenciosa de ordem.
E agora que se aproxima o Natal – esse que também desejamos branco – lembro-me de que a neve não apaga nada; apenas adormece o que ainda pulsa por baixo.
Porque a verdade é que nenhuma imensidão branca resiste ao degelo. Mais cedo ou mais tarde, a cor reclama o seu direito de retornar: infiltra-se, corre, escorre, contorna, insiste.
A cor é teimosa e é essa teimosia que nos salva.
Por isso, não desejo um Natal branco.
Desejo um Natal visível.
Que cada um encontre a coragem de abrir a própria mácula – não para ver mais luz, mas para ver mais mundo.
E que, quando o branco finalmente rachar, sejamos capazes de habitar o que emerge: o caos das cores, o fervor da vida, a ameaça e a promessa daquilo que se recusa a ser apagado.
Até 2026,
Vibremos alto.


