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Apanha a Frequência: e depois do aceno?

Apanha a Frequência: e depois do aceno?

A origem do sorriso.

Por Paulo Pascoal

É tão poderoso quando pessoas que não conhecemos de lado nenhum passam por nós e deixam rastro, nem que seja um aceno. A impressão de quem nos reconhece pela calçada, num passeio, cruzando olhares, às vezes, fixando olhares, outras, movendo ligeiramente a cabeça para cima ou para baixo, é algo que ecoa em nós durante algum tempo. 

O outro dia conversava com o tio de um amigo que veio dos Estados Unidos da América visitar Portugal pela primeira vez. Ele comentava achar estranho que as pessoas não se cumprimentavam na rua. Fiquei com vontade de desenvolver o tema. Neste caso existe uma pequena advertência que é tratar-se de pessoas negras. É comum as pessoas negras darem-se sangue na rua – “dar sangue” significa apoiar, elogiar, enaltecer – mas, infelizmente parece que o gesto se está a perder e ele questionou isso.

Estamos mais conectadas do que nunca, e com as redes sociais, estamos conectadas com pessoas noutra cidade, província, país e nem prestamos atenção às que estão do nosso lado. Andamos cabisbaixas, com a postura comprometida, curvas a olhar para o ecrã na palma da nossa mão, frequentemente, sem qualquer consciência espacial e de direção. Somos sugadas pela tela perdendo a oportunidade de apreciar o que está ao nosso redor. 

Uma amiga minha costuma dizer que pessoas que andam com auriculares não têm personalidade, evitam contato e ela odeia isso. Eu deixei-me influenciar por essa ideia. Durante muito tempo, afirmei o mesmo ser verdade para mim, até que, me tornei no tipo de pessoa que coloca os fones assim que arredo o pé de casa. 

Na cidade onde vivo há mais de 10 anos, sempre que saio à rua passo o tempo inteiro a acenar. O centro é grande o suficiente para ser metrópole e pequeno o suficiente para ser familiar. Toda a gente se conhece em Lisboa. 

Eu tinha uma “regra” que era de me deslocar até a pessoa e me apresentar, se nos cruzássemos e nos reconhecêssemos pela terceira vez. Somos mais de 8 bilhões de humanos habitando a terra, e creio ser um milagre quando duas pessoas se encontram repetidamente e existe alguma conexão. Acredito firmemente que tudo nesta vida tem propósitos, e vários caminhos, que se revelam com base nas nossas escolhas. Por isso, sinto que há seres dos quais a presença nos deixa evidente que precisamos de interagir mas, confesso que nos últimos dias saio armada com os meus auriculares. Porque será?

Quando vou sozinha, não me importo de parar, até faço questão. Tenho noção que um aceno pode facilmente se transformar num sorriso, numa palavra, num abraço, num café. Essa é uma experiência que não seria positiva se fosse um passar de lingua nos lábios ou um piropo despropositado. É importante referir que situações de assédio podem acontecer, e não é isso o que quero promover – de todo. 

Quando vou acompanhada, torna-se chato para quem está comigo. <<Se eu parar, tu segues>> é o acordo para não me prolongar na conversa. A verdade é que nem sempre tenho tempo e disposição para fazer tantas paragens. <<Pareces o prefeito da cidade>> ouço muitas vezes e aceito com um sorriso. 

E então, o que mudou?

Lembro-me de um estudo sobre a origem do sorriso feito pela cientista Janice Porteous. Ela explica que quando um macaco mostra os dentes, baixa as orelhas e aperta os músculos da garganta, está encurralado, com medo e a preparar-se para uma luta. Quando um humano mostra os dentes, baixa as orelhas e aperta os músculos da garganta, está a sorrir. 

Como é que essa estranha divergência evolutiva aconteceu?

Por estranho que pareça, o simpático sorriso humano provavelmente evoluiu de uma exibição muito mais agressiva. A principal evidência vem de expressões faciais de elos perdidos feitas por primatas que não significavam “tu és meu inimigo” nem “tu és meu amigo”. A expressão do medo – dentes cerrados, orelhas achatadas, pescoço esticado – “geralmente acontecia em situações em que um animal era capturado, ameaçado ou que fisicamente não conseguia escapar”. No entanto, em primatas superiores, como os macacos rhesus, os membros ‘subordinados’ do grupo exibem os dentes para o membro ‘dominante’ quando ocupam um posto que o dominante quer ocupar. A expressão parece desviar a agressão dominante e, então é um sinal de submissão, não-hostilidade ou apaziguamento, que resulta no dominante deixando-os em paz. 

Depois, surgiu o fang-flashing entre amigos. A cientista revela que, às vezes, nos primatas superiores (como os chimpanzés), a expressão também aparece entre iguais. “Um par de iguais separou-se durante um longo período de tempo e quando se reuniram e se reconheceram, um ao outro, abraçaram-se. Ou seja, eles passaram de mostrar não-hostilidade para demonstrar afeto ou afiliação. Tornando o acto amigável.” E assim, nasceu o sorriso.

De volta para nós, humanos, especialmente as pessoas negras e revisando a história da própria categoria negro, o sistema colonial e escravista fabricou desuniões ao mesmo tempo que as lutas negras teceram formas de união e resistência. O aceno é uma dessas formas. 

Foi a partir das múltiplas engenharias de desagregação (para reduzir a pluralidade negra) que nós desenvolvemos novos modelos de solidariedade: terreiros, quilombos, associações, etc… 

O existir do negro em comunidade ainda é visto como uma ameaça, tendo sido criadas várias leis para impedir que isso aconteça. O “le code noir” ou “o código negro” de 1685, por exemplo, considerado o “documento legal mais monstruoso dos tempos modernos” tratava em 60 artigos de: reduzir a população escravizada à inexistência jurídica e política; garantir obediência absoluta e prevenir revoltas nas lucrativas colónias. Apesar desse código não ter sido formalmente aplicado em todos os países colonizados acabou por influenciar – através das suas práticas, diretrizes e da sua estrutura normativa – os “códigos de postura municipais de cidades com populações escravizadas”, regulando o horário de circulação de pessoas negras na cidade; o uso de instrumentos musicais; os locais permitidos para comércio; o vestuário; a repressão a qualquer tipo de forma de aglomeração e a lista é infindável.

Desde as pseudociências como a craniometria e a frenologia, a 13.ª Emenda (ratificada em 1865 nos EUA) e a Lei da Vadiagem (extinta no Brasil em 1988) que vão surgindo teorias e mecanismos para reconfigurar a inferiorização e a criminalização da vida coletiva negra. 

Em Portugal, pais estrangeiros com filhos portugueses estão a ser deportados. Pessoas que nascem em Portugal, se não forem filhas de portugueses não têm direito à nacionalidade. Os ataques e as manifestações xenofóbicas têm aumentado com a ascensão dos governos de direita em todo o mundo. No Brasil existe um debate ativo, público e político sobre o ser pardo. E por muito que algumas dessas represálias não nos afetem diretamente, elas causam insegurança coletiva. 

Então, um aceno, principalmente acompanhado de um sorriso, apesar das nossas sublimes manipulações psicológicas e possíveis criações mais insidiosas, pode ser sinónimo de admiração, inspiração, satisfação, mas também pode ser um convite para uma possível amizade ou até para um amor com os mais diversos recortes. 

Um aceno é, também, um ato político para nos relembrar que precisamos de permanecer unidas. Reconhecer os nossos pares e aliados é sinónimo de facilitar espaços em que nos sintamos seguras, e esse espaço pode ser a rua. Acenar quer dizer “Oi, te vejo!”

Eu sei que, às vezes, nos custa muito ter de ir atrás para apanhar balanço e avançar, mas é necessário. Os ciclos se repetem em espiral. Como os planetas à volta do sol. Como a lua precisa de 28 dias para completar o seu ciclo à volta da terra, e o faz 13 vezes em 1 ano. E é sempre surpreendente! A lua. O ciclo menstrual da mulher. O DNA humano é 99,9% idêntico em todos os indivíduos, vamos acenar mais. 

E depois do aceno?

Eu não sei se os outros animais podem sorrir, porque eles não têm a complicada psicologia por trás dessa expressão, mas nós podemos.

E tu? Já sorriste hoje?

Até a próxima, 

Uma semana elevada para nós.

Para aprofundar mais sobre a união de pessoas negras sugiro este documento do Caçador de Histórias: https://youtu.be/WPzZIz4ferU?si=m4evAAZze5h9t8r3

E aqui deixo a desconhecida ‘rede de sorrisos’ entre mulheres negras:  https://youtu.be/HdT7Wm_WJxg?si=IozUn73PicZTGg8N

O título desta crónica foi inspirado na canção “E Depois do Adeus” interpretada por Paulo de Carvalho, músico português que venceu o Festival da Canção de 1974, cujo tema foi usado como código secreto no fim da ditadura portuguesa: https://youtu.be/MrW6zP161QI?si=p5_0GNigivDQO2Zw

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