Por Paulo Pascoal
Sempre ouvi essa expressão em momentos que, agora ao pensar, gostaria que tivessem sido acolhidos com paciência. Era como uma forma de raspanete, um ralhete — uma repreensão por algo que, naquele instante, eu não estaria a fazer “direito” ou “no tempo certo”. E isso acontecia logo pela manhã: por estar mais lenta, atrasada para fazer a cama, comer o mata-bicho e apanhar o transporte para a escola.
“Acordar para a vida” implica estar presente, atenta, agir com responsabilidade e maturidade, quebrar hábitos que já não servem — especialmente os corrosivos (como tem sido fumar). Mas, quando somos crianças, essa ideia não imprime. A maturidade parece uma coisa longínqua, reservada a quem já tem cabelos brancos.
Recentemente — e agora que carrego alguns grisalhos — apanhei-me a reproduzir esse eco para mim mesma. Estava deitada, cansada, eram sete da manhã, e já me cobrava algum dinamismo:
“Bora, Pascoal! Sai dessa cama. Vai meditar, vai beber água morna com colagénio, ácido hialurónico e limão, vai fazer o batido de proteína e frutos vermelhos, vai tomar o pequeno-almoço à rua, vai para o parque escrever, vai para a academia… vai, vai, vai!”
“Pára!” — tive de dizer às múltiplas vozes internas que tentavam arrancar-me de um estado subconsciente, tal qual no filme Waking Life (2001), de Richard Linklater — que, por certo, recomendo.
Era o primeiro dia da primeira semana de folga integral do ano.
Uma semana antes, tinha participado na exibição “Uma Densa Nuvem de Amor / A Thick Cloud of Love”, com curadoria de Pedro Faro, na Reitoria da Universidade NOVA de Lisboa. O Pedro desafiou-me a fazer algo com o meu livro XPR4xTX (O 4.º Preto), e pensei que seria interessante, para a performance, recriar o meu despertar da adolescência — com 18 anos, em Nova Iorque, na cave da casa dos meus pais. Assim que abria os olhos, o primeiro pensamento era música, sempre música. Mónica Naranjo era a artista escolhida na maioria das vezes, com “Sobreviviré”. Ultimamente, porém, tem sido Evinha — a cantora brasileira de MPB e integrante do Trio Esperança — nomeada aos Grammy Latinos pela primeira vez aos 74 anos.
Chamei a performance “Leitura para Embalar Menino Grande”, inspirada no livro de Conceição Evaristo Canção para Ninar Menino Grande, porque foi com ele que embalei, pela primeira vez, um adulto — ao lê-lo, numa noite de verão, num quarto em Almada.
Com um interregno de 25 anos, fiz do palco o meu quarto, convidando pessoas do público a embalarem-me, usando o livro como oráculo, a partir das suas datas de aniversário. Sendo um diário de 365 dias, muitas conseguiram ler-me e reavivar memórias daquele tempo, noutra voz, noutra cadência, noutra ressignificação. Não há nada como ouvir a nossa história na interpretação do outro.
O formato funcionou. O momento foi feliz. E pude contar com a presença da minha irmã mais velha, do meu irmão mais novo e de tantas outras pessoas que amo profundamente.
O que me traz de volta à questão do amanhecer com direito ao descanso. Estudos indicam o aumento de ataques cardíacos durante as férias, por fatores associados a excessos alimentares, álcool, stress de festas e mudanças de rotina. Há alguns anos, discutia-se publicamente o facto de as pessoas não estarem habituadas à inércia — e de isso causar níveis desmedidos de ansiedade. A ânsia nem sempre surge pela vontade de concretizar tarefas externas; muitas vezes é um vácuo, um vazio que vem de dentro e que não sabemos de onde nem o que significa. E como o cérebro odeia não saber, procura preencher esse vazio, inventando causas e amplificando sensações que, no fundo, nos estão apenas a pedir para abrandar.
Tenho vindo a perceber que “acordar para a vida” não é saltar da cama nem cumprir uma lista de auto-obrigações. É estar inteira no que quer que se manifeste: o cansaço, a alegria, a fome, o tédio. É poder dizer “não vou hoje” e ainda assim estar desperta. A vida, afinal, não começa no movimento — embora o movimento seja importante —, começa na consciência de estarmos vivas e de nos darmos tempo para poder simbolizar algo que ainda não foi traduzido.
Para todas nós que enveredamos pelos caminhos da paixão e que, mesmo resfolegando em meio a muitas pedras, não nos esqueçamos do gozo que as águas permitem (acaba de começar a chover em Lisboa). É uma celebração ao amor e às suas demências.
E, como diria também Conceição Evaristo, é um júbilo à vida — que nos permite embaralhar tudo: vivência e criação, vivência e escrita. Escrevivência.
E tu? Já embalaste alguém?
Até a próxima.


