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Marina Jerusalinsky lança Guia de Conduta para Mulheres Bravas

Marina Jerusalinsky lança Guia de Conduta para Mulheres Bravas

Livro teve lançamentos em SP e em Lisboa.

Por Mariana Bezerra

A artista e pesquisadora Marina Jerusalinsky acaba de lançar Guia de Conduta para Mulheres Bravas, livro que revisita séculos de repressão às vozes femininas com uma linguagem irônica e crítica. O ponto de partida veio do “juízo das bravas”, julgamento histórico que existia em Portugal entre os séculos XIV e XVIII para punir mulheres que ousavam falar em público. A partir dessa investigação, Marina criou um projeto que une arquivos históricos, relatos contemporâneos e experiências pessoais, transformando opressões em lições ácidas e potentes.

Em entrevista à Voz Futura, Marina fala sobre o processo de pesquisa que atravessa história, artes e feminismo, e revela como as 59 lições reunidas no livro ecoam até hoje nas experiências de mulheres brasileiras e portuguesas. Entre ironia e denúncia, a obra não apenas expõe as raízes do machismo estrutural, mas também provoca reflexões urgentes sobre voz, identidade e resistência.

Você acabou de lançar o guia de conduta para mulheres bravas. Fala de onde veio essa ideia? Como foi o processo de pesquisa?

    Estava assistindo à aula de um minicurso chamado “Redescobrindo 465 anos da cidade de São Paulo”, promovido pelo Instituto Bixiga, em janeiro de 2019, quando foi mencionado algo chamado “juízo das bravas”. Foi muito rápido, o assunto da aula não era esse, mas o termo me fisgou, afinal, brava é um adjetivo que, no feminino, ouvimos em tom de recriminação, e eu mesma já fui chamada assim algumas vezes. Queria entender melhor do que se tratava, então comecei a investigar. Descobri que era um julgamento que acontecia em Portugal, pelo menos do século XIV ao XVIII, única e exclusivamente para castigar mulheres consideradas “bravas”. Os delitos eram sempre ligados à fala no espaço público, como bradar, discutir ou proferir palavras “impróprias”. As julgadas eram mulheres pobres, porque naquele tempo eram as únicas a permanecer nos espaços públicos, por sua necessidade de trabalhar: como lavadeiras, nos rios, ou vendendo produtos alimentícios e artesanais. Outras trabalhadoras que ficavam nas ruas eram, claro, as prostitutas, mas em relação a elas havia uma legislação específica, cuja maior preocupação era que não ficassem à vista, por isso deviam ocupar ruas e casas determinadas nos municípios.

    A partir dessas informações iniciais, decidi desenvolver meu projeto de Doutorado em Artes (que realizei no Programa Interunidades em Estética e História da Arte da USP) em torno dessa história. Minha proposta era desenvolver um trabalho artístico a partir dos arquivos encontrados sobre esse juízo. Depois, no entanto, com a pandemia, tive que reconfigurar um pouco a pesquisa, que passou a ser composta também por outros trabalhos artísticos. Um deles foi o livro Adjetivo Feminino: Dicionário de Experiências, publicado em 2021, que possui 59 verbetes para adjetivos ouvidos por 44 mulheres que participaram da proposta de relatar suas experiências com essas palavras. Ele é também uma espécie de arquivo, que registra situações cotidianas de machismo no Brasil, mas traz, com a linguagem da ironia, uma crítica a estas. 

    Quando fui a Portugal investigar o juízo das bravas, segui com a ideia de coletar os adjetivos ouvidos por mulheres, tanto portuguesas, quanto brasileiras que vivessem no país, para publicar uma nova versão de Adjetivo Feminino. Também passei a incorporar na pesquisa histórica textos de caráter educativo que foram muito difundidos no período colonial no mundo luso-brasileiro, que traziam regras para o comportamento feminino, opondo a mulher “silenciosa” como ideal e a mulher “brava” como indesejável. Nesse momento, já estava abordando também como esses valores e estereótipos da mulher em Portugal foram impostos no Brasil, através da colonização. No entanto, conforme fui me deparando com os documentos e textos históricos e, ao mesmo tempo, com os relatos de mulheres contemporâneas, fui percebendo as continuidades de concepções machistas e misóginas de diferentes épocas. Elas se expressam, claro, de modos distintos, mas mantêm a mesma premissa fundamental: mulheres devem ser submissas aos homens. E isso significa tanto que não têm direito à voz própria, quanto que devem estar à disposição do desejo masculino. Então uni as duas propostas e cheguei à ideia de criar o “guia de conduta”, articulando essa narrativa histórica com as palavras relatadas pelas participantes em 2022, na forma de irônicas “lições”, que logicamente também apresentam uma perspectiva feminista, crítica a essas formas de opressão. 

    São 59 lições irônicas como vc mesmo chama. Consegue elencar 5 que você destacaria?

      As lições partem de palavras e expressões ouvidas pelas 45 mulheres que integraram a pesquisa. Muitas abordam o quanto a fala feminina é recriminada: brava, galinha (que, no português de Portugal, é uma forma pejorativa de nomear mulheres que “falam demais”), cusca (equivalente a “fofoqueira”, no Brasil), esganiçada (que fala alto demais), ou a expressão “é mesmo gaja”, usada para indicar que uma mulher está tendo um comportamento “tipicamente feminino”, como demorar para se arrumar ou falar muito. “Gaja” pode querer dizer algo como “fulana”, mas o mais interessante é que existe o verbo “gajar”, que significa “fazer barulho”, ou, em sentido figurado, “gritar”. Então, a mesma palavra usada para indicar uma “mulher qualquer” (uma “fulana”) foi derivada, em algum momento, para indicar alguém que grita.

      Que impacto você espera que o livro tenha nas pessoas que o lerem?

        Acredito que a incorporação de situações vividas por mulheres reais no texto, mesmo que transformadas em “lições de conduta”, traz uma grande possibilidade de identificação, para quem lê, com essas experiências, sejam mulheres ou pessoas de outros gêneros. Ao lançar meu livro anterior, Adjetivo Feminino, por exemplo, recebi comentários de alguns homens dizendo que tinham se identificado com o texto, mas pela via do opressor, e que se sentiram constrangidos. Então, assim como este, “Guia de Conduta para Mulheres Bravas” não é um livro só para mulheres: os homens têm muito a aprender com suas lições. 

        Além disso, o livro aborda concepções machistas e racistas propagadas em Portugal sobre mulheres brasileiras. O segundo capítulo do Prólogo, “Ensinamentos à brasileira – do século XVI ao XX”, conta como algumas delas foram sendo delineadas no período colonial, pela associação da negritude com a promiscuidade, o perigo e a subalternidade. O imaginário sobre a “mulher brasileira” no exterior, mesmo quando se trata de mulheres brancas, permanece ligado a essas características, o que se manifesta explicitamente nos chamamentos e expressões usados sobre muitas de nós em Portugal: “puta”, “má influência”, “rouba maridos”, “serve para cuidar”, “incompetente”, “esperta”. Espero que o livro possa contribuir, de algum modo, para desconstruir essas visões.

        Ficha técnica

        Guia de Conduta para Mulheres Bravas

        Editora Orlando, 2025

        Autora: Marina Jerusalinsky

        Projeto gráfico: Marina Jerusalinsky e Lídia Ganhito

        Adquira em: www.editoraorlando.com.br/loja  

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