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Apanha a Frequência: SINIKIPIKI

Apanha a Frequência: SINIKIPIKI

Sobre os arrastos do sotaque!

Por Paulo Pascoal

A partir da expressão “sneak peek” em inglês, que em português quer dizer uma “amostra”, “prévia”, “espreitadela”… decidi partilhar esta crónica com a consciência de que pode gerar alguns esgares dubitativos. 

Quem nunca se deixou levar pelo arrasto de um sotaque? 

Sendo de Angola, a viver em Portugal e publicando no Brasil, quis embarcar nesta viagem ao que creio ser o principal aspeto demarcador das nossas diferenças geográficas e, talvez, sociais: o sotaque. 

As variações fonéticas, de pronúncia, de vocabulário e de sintaxe são tantas que já se tem falado na possibilidade de, daqui a alguns anos, o português falado no Brasil ser Brasileiro e em Angola ser Angolano, mas…

Atenção, que isto não intende ser um artigo científico, mas sim uma dissertação feita pela vivência. Reduzirei-me a minha experiência. 

Nasci em Portugal, passei a infância em Angola, a adolescência na Espanha e o início da vida adulta nos Estados Unidos da América e no Canadá. Quando cheguei a Nova Iorque, eu falava inglês com sotaque espanhol, e quando falasse português era comum acharem que era brasileiro – devido às vogais abertas e a forma melódica e arrastada de pronunciar as palavras, influenciada pelas línguas bantu – e o mais curioso disso, é que quando me perguntassem se era brasileiro, eu dizia que sim. 

Sim, confesso, mentia para evitar aquela conversa chata que era explicar que era de Angola, onde ficava Angola e as dúvidas do costume como: Mas falam português em Angola? 

Sendo tão jovem, era muito mais cool ser do Brasil. Todo o mundo conhecia o Brasil, ou melhor, tinha referências, nem que fosse um futebolista, uma top model e alguns músicos. Era também uma forma de avançar a conversa para áreas mais divertidas, e menos complexas, do que explicar as minhas origens. 

No entanto, quando dissesse que era de Angola, e depois de dizer que também falamos português, muitas vezes, tinha de explicar que temos várias línguas nacionais como: kimbundu, kikongo, kwanyama, fiote, mbunda, nganguela, nhaneca, tchokwe e umbundo.  

Palavras como: dengo (doçura, carinho, atenção); cambada (amigo, companheiro); capanga (lutar); muvuca (aglomeração); babá (embalar); beleléu (sepultura); sunga (esticar, puxar); candomblé (negro, preto); ginga (girar, rodar, rodopiar); zumbi (espírito); bunda (nádegas) e muitas mais.

É interessante, também, compreender como as nossas línguas ancestrais foram preservadas nos quilombos e nos terreiros das religiões de matriz africana como é o Candomblé. 

Para mais informação sobre a sabedoria das guardiãs da herança cultural e religiosa do Candomblé na Bahia, super recomendo o documentário “Ìyás da Bahia” disponível no YouTube. 

Viajando um pouco mais no tempo, pelos anos 1500, conta a história que, 13 navios comandados pelo almirante Pedro Álvares Cabral, avistaram a costa do Brasil e, 6 meses mais tarde, atracaram. Por ser 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos,  chamaram-na de “Baía de todos-os-santos”. Foi nesse porto que começou o desembarque da longa e dolorosa história do Brasil. Passaram-se vários anos, até que no século XVII, a baía foi tornada o principal ponto de exportação da cana-de-açúcar, ou seja, açúcar. E porque trago aqui o açúcar? Porque há quem chame o sotaque brasileiro de “açucarado”. 

Obviamente que, tendo em conta os factos históricos – as pessoas eram trocadas por tabaco ou vendidas para trabalhar nas plantações – podemos “problematizar” essa terminologia ou, como também fizemos com o termo “negro”, re-significa-la. 

Em 2016, criei uma personagem online chamada Malária, a diva doméstica. Era uma espécie de entidade virtual, Drag-Queen, que fazia aparições espontâneas nas redes sociais, antes dos reels, dos stories e dos lives. Malária falava açucarado e isso foi problematizado. Apesar de ser um projeto bastante estimado pelo público, e por mim também, deixei de publicar vídeos da Malária. Não queria que fosse percebida como uma forma caricata, ou de apropriação cultural, mesmo estando ciente de que o “português açucarado” faz parte da minha voz interna ou, quem sabe, da minha ancestralidade. Não queria, também, promover uma ideia de que estava tudo bem com falsear uma ideia do que é um sotaque brasileiro.

  • E esse sotaque? 
  • O meu sotaque é do meio do atlântico. 

Entre 1920 e 1960, na considerada Era de Ouro de Hollywood, que foi quando se consolidaram as grandes produtoras de cinema estadunidenses com os seus filmes clássicos, os atores e atrizes eram incentivados, com treinamento, a adaptar um sotaque que fosse midiático, neutralizando qualquer tipo de regionalismo e classe sociocultural. A esse tipo de sotaque eles chamavam de “sotaque do meio do atlântico”. Que apesar de se ter tornado num sotaque regional, de Hollywood, é uma criação demográfica. 

Ao chegar à Portugal, o meu sotaque em português era uma mistura de Angola, Espanha, Estados Unidos e Canadá. Abria e fechava as vogais onde não devia, escondia consoantes, enrolava as terminações em R e ainda chiava! E por incrível que pareça, foi essa particularidade que fez com que fosse selecionado para ser a voz de programação de um canal de televisão angolano, o ZAP Viva. Foi com essa experiência que comecei a aprender a neutralizar o meu sotaque. Não porque quisesse. Muitos dos “erros” de pronúncia e enunciação eram inconscientes e só notava após uma chamada de atenção. E então, hoje em dia, até tenho pena de ter neutralizado o meu sotaque angolano, falando um português que se parece mais ao de Coimbra – cidade universitária à que se responsabiliza pela consolidação do norma culta escrita de um português padrão.

Na verdade, tudo isso é subjectivo, e até redutor. A língua é um organismo vivo e em constante evolução, a sua beleza reside na sua diversidade. E se pensarmos em Portugal, existem várias formas de falar dependendo da região, como por exemplo: ao norte: Porto e Braga; ao centro: Coimbra e Lisboa; ao sul: Alentejo e Algarve; e as ilhas Açores e Madeira, ambas apresentam formas bem distintas de se expressar. 

Se pensarmos no Brasil, no pajubá ou bajubá – que significa mistério, segredo, em diversas línguas da África Ocidental – é um africanismo e deixou de ser um criptoleto dos terreiros – que sempre foram espaços de acolhimento para as comunidades dissidentes de gênero e não só – para ser adaptado nos mais diversos escalões da sociedade, inclusive, muitos termos são usados coloquialmente, hoje, em Portugal. 

Expressões como: babado; catação; close; fazer a linha; machuda; barbie; fazer a egípcia ou fazer a louca; e tantas outras que já pertencem ao imaginário do coletivo e são oriundas das margens. 

Ou, em Angola com o calão, expressões como: bué; fixe; cubico; banda; avilo; musseque; windeck; tá no limão; tá cuiar… que a partir das músicas, principalmente do kuduro, passaram a pertencer ao vocabulário de todos. 

Quando comecei a escrever “Sinikipiki” a minha intenção era explorar esse demarcador sócio-geográfico, mas ao terminar sinto que, no fundo, a nossa origem linguística é a mesma, tendo ganho novas cores, sotaques, e sido reinventada pela oralidade. 

O português vem do latim, mas como diz o escritor, linguista, professor e tradutor Caetano Galindo, autor do livro Latim em Pó: “A gente não está falando de um povo que chega e influencia uma língua existente. A gente está falando de uma língua que é absorvida por uma população estrangeira e que é devolvida para essa população completamente alterada.” O português vem do latim, mas não do latim da literatura clássica. O português deriva do latim popular, das classes baixas, andrajosas, dos analfabetos do império romano, que eram quem se deslocavam para regiões afastadas do centro e eram quem levavam a sua forma de latim.

“Sinikipiki” é como a minha avó pronunciaria “sneak peek” com o seu forte sotaque kimbundu. É também a prova que por muito que a língua nos una, a dada altura, se fará outra e nos distanciará. Assim é a história da globalização. “Sinikipiki” é um termo de conforto e uma provocação à criação. 

Aqui, deixo alguns links:

www.localingual.com página em que se podem escutar “todos” os sotaques do mundo:

Links para os documentários:

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