Por Giulia Amendola, diretora de Comunicação da Voz Futura.
Recentemente fui ao oftalmologista, como vou (quase) todos os anos, desde que uso óculos. Alguns ajustes aqui e ali, umas perguntas estranhas, veio o pedido de um exame complementar. Quando busquei o laudo, fiquei apavorada: perda de visão parcial na vista direita. Investigação de glaucoma. Escavação do não-sei-o-que-do-fundo-do-olho.
Imediatamente, parecia que eu tinha perdido um pouco do mundo. Comecei a pensar em tudo que perderia caso não tivesse mais a visão de um olho. Uma saudade imensa de uma ausência que eu não tinha nem percebido ainda. Fiquei pensando nos filmes, as paisagens, a leitura prejudicada – a minha profissão como um todo. Na verdade, até bem mais do que a minha profissão. Minha vida, né? Perdi a conta de filmes (de terror) que se passaram na minha cabeça. Como seria minha velhice? Como eu chegaria lá? Será que alguém me ajudaria?
Comecei a duvidar dos meus óculos (desatualizados, é verdade) e qualquer cisco era, obviamente, um sinal de que, sim, é agora a hora de me despedir do mundo como eu o conheço. Não tem nada como a sensação de perda pra gente apreciar alguma coisa, não é mesmo?
Nunca estive tão consciente sobre a minha visão. Consciente que ela existe, que quando mexo o olho para qualquer outro lugar que não seja na minha frente, essa bolinha dentro da minha cabeça traduz o mundo aqui para dentro. Os movimentos involuntários dão conta de si e essa estranheza de estar constantemente percebendo algo que era para acontecer sem pedir licença. A forma como a gente vê o mundo é voluntária ou não?
Resolvo ir à praia. Olho o horizonte e me sinto pequena. Olho o tamanho do mar. Fico com medo de mergulhar, vai que as ondas me levam? Vai que entra areia no olho e eu pioro a situação? Mas quero ir. Me sinto pequena no meio desse mundo, dessa galáxia, na frente desse mar, dessa baia. Por que eu me preocupo tanto? Meus problemas são tão pequenos. Eu só queria viajar pra ver o mundo – redondo igual ao meu olho. Olho as nuvens, sinto que meus globos oculares estão fazendo um exercício. Tipo como se eu estivesse na academia mesmo. Faço movimentos circulares com a visão, panorâmicos, verticais. Percebo montanhas que eu não conhecia na cidade que eu vivo há tanto tempo, percebo nuvens em formatos engraçados, vejo um casal apaixonado e uma criança aprendendo a andar. Volto pra casa pensando porque andamos olhando tanto para baixo (ok, o pavimento do Rio não é exatamente o mais liso da face da terra…).
Por que não mexemos mais os olhinhos à procura dos horizontes de todo dia?
Uma eternidade se passou até a consulta de retorno. Viajei. Fui a um casamento. Olhei para o alto da igreja. Vi o lago enorme em frente ao Quitandinha em Petrópolis. Peguei estrada e me perdi na mata, nos milharais, nas histórias absurdas que um casal me contou. Me senti pequena de novo mesmo em terra firme: olha o tanto de terra que tem por aí, que existe sem ninguém interceder. O tanto de floresta. O tanto que há ainda pra ver e os meus olhos querendo me dar algum tipo de rasteira.
Quando finalmente chegou o dia da consulta de retorno, meu médico me tranquilizou dizendo que não era para todo esse desespero, me prescreveu um colírio e pediu para voltar em seis meses. Fiquei ali, sentada alguns minutos, com uma sensação de que eu tinha ganhado na loteria. Antes de sair, uma dica ele me deu: olhe mais as coisas que estão a sua volta; se está na frente do computador, olhe para a janela; se está na praia, ao invés de olhar para areia, olhe para o mar; se está no carro, não olhe o que está dentro dele, olhe para fora. “Além de exercitar os olhos, você vai ver bastante coisa que não tava vendo, eu te garanto”.
Pois é, doutor. É mesmo preciso ver o horizonte.
